Displicência resulta em falta de água

Data: 05/06/2014
Yves Besse é vice-presidente do Conselho de Administração da CAB ambiental e sócio-diretor da M&B consultoria, tecnologia e Engenharia

Mês passado tive a oportunidade de visitar a SEM, empresa responsável pelos serviços de água e esgoto na região metropolitana de Marselha, na França. Queria entender porque uma região turística com aquela, localizada em uma área de estresse hídrico (como toda a região mediterrânea), conseguia enfrentar a sazonalidade, quando gente da Europa inteira passa férias de verão na Côte d'Azur.

Nunca tive notícia de haver falta de água e poluição das praias no verão europeu, problemas como os que enfrentamos recentemente em todo o nosso litoral. Lá não se ouve falar em calor excepcional, falta excepcional de chuva (diferente daqui, lá praticamente não chove no verão) e quantidade exagerada de turistas nas últimas décadas.

Descobri que Marselha, a terceira cidade em população da França, nos anos 30 sofreu um grave incêndio em um recém-inaugurado centro comercial, no qual morreram mais de 200 pessoas. Uma das principais causas da catástrofe foi a falta de pressão na rede de água, que dificultou a ação dos bombeiros em debelar as chamas.

A prefeitura da cidade decidiu então enfrentar problemas futuros com uma parceria com Corpo de Bombeiros de Paris, para melhorar a qualidade de seus profissionais, e buscou parceria com uma empresa privada para gerir os serviços de água e esgotos de maneira eficiente e eficaz.

Nasceu a SEM, empresa privada cujo presidente é nomeado pelo prefeito e que até hoje opera os serviços.

Vários modelos contratuais foram utilizados para fazer frente aos problemas. Inicialmente os serviços foram concedidos por 50 anos e exigiram um volume enorme de investimento para adequar os serviços.

A seguir foi utilizado o modelo de affermage (arrendamento) para os serviços e hoje um modelo de gestão delegada foi recentemente definido.

Essas mudanças foram feitas em decorrência da evolução das metas ao longo dos anos: universalização dos serviços, renovação e manutenção, adequação às novas normas europeias e, finalmente, a necessidade do aumento da eficiência, de qualidade, de regularidade e sustentabilidade dos serviços. Hoje Marselha tem disponível um volume quatro vezes maior de água bruta do que necessita para atender a sua população.

Isso quer dizer que está preparada para enfrentar qualquer incidente. As quatro fontes de abastecimento de água são operadas pela SEM de maneira a mantê-las sempre adequadas e disponíveis para uso a qualquer momento.

Ao voltar ao Brasil, me deparo com o maior estresse hídrico dos últimos tempos para Região Metropolitana de São Paulo em consequência de uma falta excepcional de chuvas e uma grande confusão na atribuição de responsabilidades.

A Agência de Bacias polemiza com o governo de São Paulo, o governo do Rio entra na briga, a Fiesp entra no debate, outras bacias hídricas defendem o seu quinhão de água, a imprensa questiona e procura culpados, por fim, a Sabesp é obrigada a assumir uma responsabilidade que não é dela, mas que sempre lhe foi delegada.

Onde estavam todos antes de chegarmos a essa situação crítica? Curioso é que a falta de recursos e de definição de titularidade dos serviços sempre foram usadas para justificar a sujeira do saneamento. Enquanto isso, durante todo o tempo diante de nossos olhos esteve a descontrolada poluição dos nossos rios, lagos e baías.

Na verdade, sofremos de uma grande falha de gestão pública, de planejamento e regulação, mesmo tendo um marco regulatório claro de 2007 que diz tudo o que e como deve ser feito.

Ainda assim, quando a situação aperta, a culpa é atribuída às variações climáticas (pela falta de chuva) e aos consumidores (que não sabem água sem desperdiçá-la. No fim, quem paga a conta somos nós, cidadãos brasileiros, habituados a arcar com impostos de países de primeiro mundo e receber serviços de terceira qualidade.

Está na hora de nós exigirmos soluções reais e sustentáveis para o saneamento básico. Não interessa se por meio de uma parceria com empresa privada, como fez Marselha, ou entre empresas públicas estaduais ou municipais.

As iniciativas devem ser, isso sim, bem planejadas, reguladas, implementadas independentemente de ideologias políticas e partidárias, com eficiência para atender as expectativas de todos os envolvidos: governos, operadores, usuários e a sociedade. E assim parar com essa velha história de responsabilizar o clima e o consumidor pela nossa displicência.
DCI


< voltar