Água, bem escasso e de preço incerto

Data: 23/04/2014
Stela Goldenstein publicado no Valor Econômico


Alarmados com a situação de rios que alimentam usinas hidrelétricas, cidades, indústrias e agricultura, chegaremos à estação seca em situação crítica. Num país de população concentrada em grandes cidades e matriz energética pautada pela energia hidrelétrica, o quadro é grave. Não sabemos se a redução de precipitações tem origem em mudanças climáticas, ou se estamos diante de variação meteorológica eventual.

A insuficiência de chuvas agrava e acelera o desfecho de um quadro apontado há muitos anos nos meios técnicos. As causas da crise são várias, e a pressão que exercemos sobre os recursos hídricos levaram ao chamado stress hídrico. Vimos usando até o limite as águas aparentemente disponíveis, de locais cada vez mais distantes, para atividades que preveem uso intensivo. A oferta, ainda que abundante em grande parte do país, não é elástica como nossa prática sugere.

A demanda de água aumenta de forma irrealista e os esforços têm sido orientados fundamentalmente para manter e ampliar captações. Em regiões como a Bacia do Piracicaba, empresas cujas escolhas locacionais subestimaram a hipótese de redução da oferta, nesta estiagem tiveram que reduzir sua produção. No Ceará, a Petrobras passou a trazer água desde 300 km, pois reservas que explorava há anos agora foram destinadas ao abastecimento público.

Há peculiaridades ainda por equacionar na gestão das águas. Busca-se entender a água como uma commodity, bem de qualidades parametrizadas, parte de um mercado global, com preços estabelecidos por esse mercado, que pode ser transportado para onde seja necessário e comercializado em bolsas de mercadorias e futuros. De fato, em algumas circunstâncias e para alguns usos, a água se comporta de forma similar. Mas há aspectos relativos à oferta, à demanda e à gestão das águas que a diferenciam fortemente dos mercados de commodities.

A água é um bem finito, alocado de forma desigual, dotado de valor econômico, mas definir seu preço não é fácil. Conseguimos precificar os serviços de tratamento e distribuição da água, mas com mais dificuldade o valor do direito à sua captação bruta. Até poucos anos atrás, os preços associados à água eram apenas os relativos a serviços das empresas de saneamento. Desde fins dos anos 80, a legislação de São Paulo definiu o pagamento pelo direito de captar e usar esse bem público. Ou seja, os usuários pagam pelo direito de uso, dado que o bem é escasso, tem valor econômico e que são necessários investimentos e ações para garantir disponibilidade e qualidade. Avança no país a implantação da cobrança do uso da água pelos usuários que a captam como insumo de atividade ou processo industrial ou agrícola, o que não se confunde com os valores dos serviços de empresas de saneamento.

Uma vez que todos paguem pelo direito ao uso da água, ela se tornará uma commodity? Os debates sistemáticos sobre o tema são carregados de ideologia.

O preço pelo uso da água bruta não é definido unicamente pelo mercado: depende de aspectos como os usos pretendidos, a disponibilidade de água naquele trecho do rio, as condições de devolução-ou não, após o uso, e ainda de processos negociais entre usuários e poder público. É dado em última instância pelos Comitês de Bacia Hidrográfica, aonde se garante aderência à realidade de mercado e às políticas públicas validando os valores com usuários, sociedade civil e poder público.

Sendo a água um bem público, o direito à água como garantia da vida a diferencia das commodities e lhe confere posição única entre os ativos de uma sociedade. Pode ser e é transportada para diferentes usos, em mercados afastados de seu local de produção, similarmente às commodities. Mas sua alocação não é livre decisão de mercado. Quando a oferta é insuficiente para todas as demandas, o abastecimento público será sempre priorizado, mas é preciso conciliar usos múltiplos, garantir a apropriação parcial e condicional, re-uso, usos concomitantes ou sequenciais... Determinados usos implicam em conflitos irreconciliáveis, e os critérios de priorização estão na legislação.

Outra questão distingue este bem: a produção e acumulação de água são processos fortemente dependentes de condições meteorológicas e também da proteção de vastas florestas. A água não nasce em árvores, mas sem árvores, não há água, já se disse. O valor econômico das florestas (terra, árvores, biodiversidade) que garantem a presença de água aonde nos organizamos para captar é objeto de grandes discussões, ainda a amadurecer. Como incluir essa importante variável, a criação e manutenção de florestas, na definição do valor da água, de forma a melhor formar seu preço? Ainda são incipientes os mecanismos de pagamento/retribuição aos proprietários rurais pela proteção que podem fazer às florestas.

Historicamente desconsideramos o valor monetário intrínseco às florestas como geradoras de água, não as incluímos nas equações financeiras dos usuários da água, dificultando o financiamento de sua proteção. Mesmo os recursos oriundos da cobrança pelo uso da água ainda são parcamente aplicados na aquisição e proteção de florestas. No campo da gestão da oferta de água há muito por fazer e ainda não são claras as oportunidades de investimentos privados.

Diferentemente de outras commodities, a água "disponível" não pode ser simplesmente captada e transportada para alhures, porque um usuário fundamental da água são os próprios ecossistemas da bacia hidrográfica em que esta água se encontra originalmente. Uma parcela (quanta?) da água, a chamada vazão ecológica, não pode ser retirada, não pode ter sua condição físico-química modificada e sua valoração e precificação é muito difícil. E mais: é a sua permanência no local, com usos restritos, que mantem as florestas, as quais, por sua vez, garantem produtividade hídrica. Estranha mercadoria...

Stela Goldenstein é diretora executiva da Associação Águas Claras do Rio Pinheiros

(Valor Econômico)


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