Até quando as águas entrarão pelo cano?

Data: 28/11/2013



por Rubens Harry Born*

Quando alguém se encontra em uma situação ruim ou desfavorável, diz-se popularmente que “entrou pelo cano”; ou, se o panorama for mais desesperador ainda, que “está com água até o pescoço”, prestes a se afogar.

Tais expressões, paradoxalmente, aplicam-se para descrever a situação das águas e serviços dos ecossistemas que garantem aos humanos, e demais seres vivos, as condições de vida no Planeta Azul.

Pessimismo face à crescente mobilização da sociedade frente aos desafios ambientais? Não. Importante reconhecer que ainda não estamos dando conta de equacionar os problemas ambientais e sociais decorrentes da contínua e desenfreada busca de bem-estar que, em escala nacional e global, é subvertida pelo crescimento econômico apressado e desbalanceado.

Tal reconhecimento é instrumental na escolha de estratégias políticas e atitudes que possam, no conjunto, ampliar gradativamente os passos rumo à sustentabilidade e conservação dos bens e serviços ambientais, considerando também os aspectos de equidade e justiça para uma saudável e digna vida de todos.

No Brasil, assim como em muitos países em desenvolvimento, águas captadas em rios, lagos e poços profundos, e conduzidas até as cidades para serem usadas em nossas residências, indústrias e comércio, acabam “entrando pelo cano”, mesmo quando despejadas a céu aberto em rios e córregos: a falta de tratamento sanitário polui rios, causa doenças transmissíveis e afeta a economia.

Na virada do século, o estudo Avaliação Ecossistêmica do Milênio (AEM) promovido pelas Nações Unidas, indicou que a expansão da degradação ambiental não foi refreada pelo aumento de conscientização ou do número de pessoas, organizações, programas e políticas inspiradas em ideias em torno da sustentabilidade (nas suas várias dimensões: ambiental, social, cultural, econômica e política) e do desenvolvimento de nossas sociedades.

Há desperdício e perda de água em todos os setores das atividades econômicas: na agricultura, responsável por cerca de 70% da água doce utilizada; nos sistemas públicos de redes de abastecimento; e em nossas residências. Segundo dados oficiais, há entre 25% e 45% de perdas e “desvios” (furto) de água em redes públicas de águas nas cidades brasileiras.

Águas são usadas para diversos fins: geração de energia, indústria, agricultura, mineração, navegação, recreação e para nossa higiene. Para cada um desses usos há critérios, de qualidade e quantidade do uso, e para seu controle existem órgãos públicos específicos e campanhas de “uso racional” (quantas vezes você já não ouviu o pedido de ficar menos tempo no chuveiro?).

Nos debates para a Rio+20, a Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável, ficou evidente que a somatória de iniciativas públicas e privadas, de indivíduos, movimentos da sociedade ou de empresas ainda não foi capaz de garantir globalmente o cumprimento de algumas das Metas de Desenvolvimento compromissadas internacionalmente para o ano de 2015, como, por exemplo, a de reduzir em 50% o déficit de abastecimento de água potável e acesso ao saneamento básico. São cerca de 1,2 bilhão de pessoas sem acesso a volumes diários de água saudável e 2 bilhões que não têm esgoto coletado ou tratado em todo o mundo.

É notório que as dimensões econômica e social do desenvolvimento humano ainda ganham destaque e prioridade em relação às da conservação e sustentabilidade ambiental, apesar dos acordos internacionais, leis nacionais e programas voltados para essa questão. Por exemplo, no âmbito da Convenção de Diversidade Biológica, temos a Meta 11 de Aichi para a Biodiversidade, que propõe conservar, até 2020, pelo menos 17% de áreas terrestres e águas interiores e 10% das áreas marinhas e costeiras.

Há compromissos globais, segundo o PNUMA para a “completa eliminação de certos produtos químicos, como as substâncias que destroem a camada de ozônio (sob o Protocolo de Montreal), o uso de chumbo na gasolina e os poluentes orgânicos persistentes (POPs) relacionados no Anexo I da Convenção de Estocolmo”. A Agenda 21, um programa de ações da Rio-92, trazia metas para o ano 2005 no tema de águas. Você sabe o que foi feito?

Aumento populacional, falta de cumprimento da legislação ambiental, bem como expansão do consumo e da produção (o PNUMA diz que a pecuária é responsável por mais de 8% do uso de água doce no mundo), são alguns dos fatores que atrasam o efeito das boas iniciativas.

Todo esse panorama pode se agravar com as mudanças climáticas, cujos efeitos sociais, ambientais e econômicos já são percebidos e atingem, sobretudo, populações e regiões mais vulneráveis, com as alterações no ciclo hidrológico, causando inundações, secas, quebras de safra e migrações.

Sob certo ponto de vista, a “quantidade de água doce” disponível para uso humano está sendo fortemente alterada por tais fenômenos; estamos afetando a quantidade e a qualidade das águas, consideradas como “recurso renovável”, embora seu uso seja caro, quando não escasso, ou insuficiente em determinadas regiões.

A seguridade hídrica, ou seja, a satisfação das necessidades humanas de águas mediante a garantia da integridade de ecossistemas hídricos e de dinâmicas hidrológicas deve ser considerada em todos os níveis e regiões. Para tanto, é necessária uma visão sistêmica e abrangente de questões e conceitos tão complexos, que conectam a gestão de recursos hídricos com saúde, educação, segurança alimentar, habitação e saneamento, bem-estar e desenvolvimento social.

Para evitar que as águas e todos nós “entremos pelo cano”, precisamos superar a fragmentação de nossas ações; devemos considerar todas as “etapas” do uso de água pela nossa sociedade: desde a sua captação até a sua devolução, após tratamento, seja nos usos urbanos e rurais, sociais ou econômicos.

Necessário promover a sinergia entre as iniciativas de órgãos públicos, comunidades e empresas. Não somente atitudes e iniciativas micro, no plano pessoal ou de cada empresa e organização, mas também de ações e visões abrangentes, coletivas, para territórios (áreas de mananciais, bacias hidrográficas, zonas econômicas, regiões metropolitanas).

agua22 300x187 Até quando as águas entrarão pelo cano?Comitês de bacia hidrográfica, colegiados nos quais poder público, setor privado e organizações da sociedade expõem seus interesses e compromissos para a gestão das águas e dos territórios abrangidos, são canais para eventuais inovações e iniciativas.

O Programa Cultivando Água Boa, promovido por Itaipu Binacional, envolve municípios, órgãos estaduais e federais e, sobretudo, valoriza o engajamento e a participação de diversos segmentos da sociedade: educadores, jovens, organizações não governamentais e produtores rurais.

Campanhas mais focadas também são muito relevantes, especialmente quando mobilizam e engajam a sociedade na demanda por ações, públicas e privadas, bem como no controle da sua execução. Um exemplo é a iniciativa em prol da recuperação da qualidade do Rio Tietê, a partir dos anos 1990, por liderança da Fundação SOS Mata Atlântica.

Um ingrediente básico dessas iniciativas é o que levou milhares de pessoas às ruas, em meados de 2013 no Brasil: a indignação pela degradação, pelo descaso. A vontade de fazer a diferença, de se associar a uma causa e promover mudanças para um mundo melhor. Água e vida são questões de sociedade, de todos nós.

Não basta usar e descartar água, e depois transitar com indiferença por uma avenida ao lado de um rio ou córrego degradado. Água boa tem que fluir. Ou até quando vamos deixar a água “entrar pelo cano”?

* Rubens Harry Born é engenheiro civil e ambiental, mestre em saúde pública e doutorado em acordos ambientais internacionais. Foi coordenador do FBOMS – Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente, seu representante na Rio-92 e na Rio+20 e coordenou o Instituto Vitae Civilis, até 2009.

Ideia Sustentável.


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