Responsabilidade de Proteger é tema de debate

Data: 02/05/2013
Adotado de forma consensual pelos Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2005, o conceito de Responsabilidade de Proteger (R2P, na sigla em inglês) – que pode ser entendido como o direito ou o dever da comunidade internacional em intervir para proteger populações civis contra crimes de guerra, genocídio, crimes contra a humanidade ou limpeza étnica – está longe de ser unanimidade entre os especialistas em Direito e Relações Internacionais.

Um panorama dos debates atuais sobre o tema foi traçado no dia 25 de abril, durante o Colóquio Internacional “A Responsabilidade de Proteger em questão: um debate franco-brasileiro”, realizado pela Universidade de São Paulo (USP), em parceria com Consulado Geral da França e apoio do Círculo Lévi-Strauss.

O evento contou com a participação do presidente da FAPESP e ex-ministro de Relações Exteriores, Celso Lafer, e do jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, editor da revista Política Externa e consultor de comunicação da FAPESP.

Durante a abertura, o embaixador da França no Brasil, Bruno Delaye, afirmou que a R2P é um conceito ao qual seu país está profundamente ligado, referindo-se ao fato de que muitos teóricos consideram o conceito uma evolução do “direito de ingerência” – proposto por políticos franceses há mais de 20 anos.

“É um princípio voltado para a ação, que nos permite salvar vidas. A França defende a concepção ampla desse princípio, deixando espaço para aspectos não militares, mas sem descartar medidas coercitivas”, afirmou.

Delaye lembrou que a R2P está baseada em três pilares. Em primeiro lugar, cabe ao dirigente de cada Estado proteger sua população contra os quatro crimes previstos no conceito (crimes de guerra, genocídio, crimes contra a humanidade e limpeza étnica). Em segundo lugar, cabe à comunidade internacional oferecer ajuda ao Estado em crise quando necessário. Por último, quando o Estado não puder ou não quiser agir para proteger a população civil, uma ação coletiva pode ser realizada com a anuência do Conselho de Segurança da ONU.

“O princípio da R2P inclui a responsabilidade de prevenir, intervir e reconstruir. Foi aplicado com sucesso no Quênia, na Guiné e principalmente na Líbia”, afirmou o embaixador francês referindo-se à intervenção militar realizada em 2011 pelos países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que culminou com a queda e a morte do ditador Muammar Khadafi.

A mudança de regime resultante da ação militar tem sido apontada pelos críticos da R2P como um desvio do objetivo original da medida, que era evitar o massacre de rebeldes em Bengazi.

Essa é a posição de Rony Brauman, ex-presidente da ONG Médicos Sem Fronteiras e um dos participantes do evento. “O problema central da R2P não é a prevenção dos crimes ou a reconstrução. Isso está bem aceito. O ponto problemático é o uso da violência para colocar fim à violência”, disse.

De acordo com Brauman, no caso da Líbia, a decisão da guerra precedeu as justificativas usadas para a intervenção. “Foi uma guerra preventiva, antes que os direitos humanos fossem de fato violados. E há motivos para duvidar que houvesse essa ameaça na época. É um modelo de pré-cognição semelhante ao dos policiais do filme Minority Report, que perseguem criminosos antes que cometam crimes. É uma ideia totalitária de segurança absoluta”, disse.

Já Alain Rouquie, ex-embaixador da França no Brasil e presidente da Maison de l’Amerique Latine, questionou se seria necessário esperar o massacre ocorrer para tomar a decisão de agir. “Khadafi afirmou em seu discurso que iria esmagar seus oponentes. Talvez o pior só não tenha ocorrido porque a decisão de intervir foi tomada a tempo”, avaliou.

Os resultados da ação no norte da África já haviam sido criticados pela presidente Dilma Rousseff durante a Assembleia Geral da ONU de 2011, como lembrou Oliver Stuenkel, professor assistente em Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas.

Durante seu discurso de abertura, naquela ocasião, a presidente brasileira afirmou que “muito se tem dito sobre a Responsabilidade de Proteger, mas muito pouco sobre a Responsabilidade ao Proteger (RWP, na sigla em inglês)”, introduzindo um novo conceito ao debate internacional.

A sugestão brasileira foi apresentada como uma forma de aprimorar a R2P e reduzir o risco de abuso, incluindo, por exemplo, mecanismos que possam fornecer avaliação objetiva e detalhada de tais perigos, bem como formas e meios de evitar danos aos civis.

Além disso, a RWP propõe que a comunidade internacional seja rigorosa em seus esforços para exaurir todos os meios pacíficos disponíveis nos casos de proteção de civis sob ameaça de violência, o que foi visto pelas grandes potências da ONU como uma forma de enfraquecer a R2P e atrasar as intervenções.

“Foi uma das poucas vezes em que o país se destacou no debate internacional ao introduzir um novo termo em uma área tão delicada. Mas depois se assustou com a reação dos demais países. É uma grande decepção”, disse Stuenkel.

O embaixador Fernando Mello Barreto, chefe do Escritório de Representação do Itamaraty em São Paulo, negou que o governo brasileiro tenha abandonado o debate. “As ideias foram lançadas e o processo de construção é coletivo. Não cabe a um único país. Mas continuan havendo reuniões e discussões bilaterais”, disse.

Isonomia e soberania

Para a diretora da ONG Conectas, Lucia Nader, o governo brasileiro precisa explicar o que concretamente mudaria com o novo conceito. “Será que as críticas que o Brasil faz à R2P são superadas pela RWP? Algumas coisas são colocadas pelo Brasil na mesa sem o devido acompanhamento posterior, invalidando uma série de outras medidas que poderiam ser tomadas”, afirmou.

Jean-Baptiste Jeangène Vilmer, pesquisador em Direito Internacional da McGill University, no Canadá, também cobrou maior detalhamento sobre a RWP do governo brasileiro.

“Nunca se sabe ao certo as intenções dos países intervenientes. O Brasil tenta precisar o limite para intervenção com uma série de critérios. Essas restrições propostas pelo Brasil correspondem aos princípios da guerra justa. Mas o diabo está nos detalhes. É preciso entrar nos detalhes para entender o sentido da proposta”, opinou.

Já o presidente da FAPESP lembrou que uma das preocupações do governo brasileiro era de que a RWP não contemplasse a mudança de regime no país-alvo da intervenção.

“Obviamente isso é uma reação ao que aconteceu na Líbia. Mas, se você olha para a situação atual da Síria, por exemplo, vê que não seria possível resolver a questão sem uma mudança de regime. No entanto, isso gera uma série de outros problemas. Essa temática não é simples e comporta uma diversidade de atitudes”, ponderou Lafer.

Para Lins da Silva, um dos principais problemas relacionados tanto à R2P como à RWP é que não fica explícito a quem cabe executar a responsabilidade de proteger, o que acaba por enfraquecer o conceito. “Está implícito que cabe ao Conselho de Segurança da ONU, mas da forma como ele está constituído atualmente é ineficaz, deficiente e dificilmente será isento”, afirmou.

Outra dificuldade apontada por Lins da Silva é a impossibilidade de conciliar a responsabilidade de proteger com o conceito de isonomia e de soberania. “Sempre vai haver esse desnível que faz com que a aplicação da responsabilidade de proteger seja seletiva. Por que se aplicou contra a Líbia e não se aplica contra a Síria? Por que se aplicou na Costa do Marfim e não no Congo? Duvido que seja aplicada contra a Rússia ou contra a China caso um dia venham a cometer atos de genocídio”, opinou.

Mas os pontos falhos, na opinião de Lins da Silva, não invalidam o conceito, que define claramente cinco critérios para o uso de força militar. É preciso que se comprove a gravidade da situação, que o motivo seja evitar a prática dos quatro crimes englobados pelo conceito, que seja o último recurso e haja proporcionalidade da intervenção em relação à ameaça e é preciso avaliar se as consequências não serão piores que a não intervenção.

“Se isso for feito de maneira séria, pode ser que se evite o uso de força militar – o que me parece ser sempre a melhor solução. O conceito é bom, avança em relação aos anteriores, tem apoio da opinião pública, mas depende da vontade política de quem estiver na tomada de decisões e das condições políticas de cada situação específica”, analisou.

Agência Fapesp


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