Tarefa coletiva

Data: 05/09/2012

No cenário da economia verde, gerir resíduos deixa de ser um problema restrito ao poder municipal e entra para a agenda das empresas como item essencial à sustentabilidade dos negócios. Dois anos após a promulgação da Lei 12.305, em agosto de 2010, que obriga a logística reversa e o fim dos lixões até 2014, setores da indústria e varejo, cooperativas de catadores e prefeituras se movimentam para mudar a realidade do lixo urbano no País.


"Neste momento, é importante sermos pragmáticos para achar modelos viáveis de gestão, avaliar tecnologias e definir como fechar as contas", afirmou na sexta-feira (31) a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, durante o seminário "Política Nacional de Resíduos Sólidos: A Lei na Prática", no Jardim Botânico, Rio de Janeiro.



O evento debateu as mudanças na gestão, tendências de mercado e os desafios para que o novo marco legal saia do papel e efetivamente gere ganhos econômicos, sociais e ambientais. De acordo com a ministra, "o foco do governo não é controlar para se fazer do jeito que ele quer, mas promover a busca de novos caminhos e soluções". A reciclagem de resíduos, segundo ela, "não é trivial". "É cômodo falar no tema e permanecermos reciclando apenas 1% dos resíduos, como em São Paulo e no Rio de Janeiro", lamentou a ministra.



Entre os principais desafios, na análise de Izabella Teixeira, está "definir um modelo de logística que considere as diferenças regionais do País e as leis do mercado". Ela reconhece a existência de "nós que precisarão ser desatados" para fazer funcionar a coleta seletiva nas cidades e o aproveitamento industrial dos materiais recicláveis em maior escala.



A discussão de tarifas e incentivos, expansão de cooperativas e tecnologias, como a possibilidade da incineração de resíduos para gerar energia, são alguns pontos. A reciclagem total, para a ministra, é "uma utopia", mas há motivos para otimismo: recente pesquisa realizada pelo Ministério do Meio Ambiente indica que a nova classe média brasileira já incorpora as informações sobre reciclagem, apesar de hoje 52% da população ainda não separar o lixo nas residências. De acordo com o estudo citado pela ministra no seminário, 86% dos brasileiros estão dispostos a adotar essa prática - e não o fazem por falta de informação ou de coleta seletiva municipal.



"A nova lei traz princípios inovadores, já é uma realidade nas ações empresariais, como a responsabilidade compartilhada na gestão dos resíduos", ressaltou Victor Bicca, presidente do Compromisso Empresarial para a Reciclagem (Cempre), na abertura do evento. "O diálogo tem sido a chave essencial para se construir um modelo brasileiro para o setor, com o desafio de estruturar o parque industrial de reciclagem e agregar valor ao produto reciclado."



Os municípios se engajam no processo, segundo constatou a Pesquisa Ciclosoft sobre a coleta seletiva nas cidades, divulgada pelo Cempre no seminário. Após a nova lei, o número de prefeituras com o serviço cresceu 73%. O custo da logística para se recolher resíduos recicláveis ainda é alto, 4,5 vezes superior ao da coleta convencional, mas no passado chegou a dez vezes. "A tendência é que diminua, por meio da racionalização da coleta, transporte de mais resíduos por quilometragem, e novos arranjos e parcerias locais", explica André Vilhena, diretor-executivo do Cempre.



A prefeitura de Natal (RN), por exemplo, reduziu custos e aumentou a coleta seletiva ao contratar cooperativas de catadores para a prestação do serviço. "Transferimos para esses trabalhadores os valores anteriormente pagos a empresas terceirizadas", informa Heverthon Rocha, gerente de resíduos sólidos da cidade. Por meio de contrato com cooperativas, a remuneração atual é de R$ 0,05 por domicílio visitado, o que hoje totaliza, somando outros pagamentos, R$ 48,7 mil mensais - valor que se soma à renda dos cooperados com a comercialização dos materiais recicláveis.



"Se fizemos em Natal, por que não no Rio de Janeiro e em São Paulo?", sugere Severino Lima Júnior, representante do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), no Rio Grande do Norte. "Coleta seletiva não é custo, mas investimento que reduz gastos com aterros", argumenta Lima. Catador que quando criança vendia picolé no lixão, Lima tornou-se liderança da categoria em nível nacional, e viajou recentemente para conhecer a experiência de reciclagem em países da Europa e Ásia. "A expectativa, nos preparativos da capital potiguar como sede da Copa do Mundo da Fifa, é que o modelo coleta alcance independência política", diz Lima.



Já em Linhares (ES), o arranjo local teve como chave a parceria com a iniciativa privada, que mobilizou poder público, catadores e ONGs. "Investimos na construção de uma central de triagem mecanizada, em terreno cedido pela prefeitura", conta Fabiano Rangel, gerente de sustentabilidade da SABB Coca-Cola. Os custos de manutenção e benefícios sociais são cobertos pelo município, mas o plano é a nova central, com capacidade de processar 160 toneladas mensais, tornar-se autossuficiente em dois anos. "Queremos serviço sem assistencialismo", diz Roberto Laureano, coordenador nacional do MNCR, que contabiliza 20 mil catadores em processo de organização no País.



Consenso exigiu duas décadas de negociações



Era exatamente 1h36 da madrugada de 11 de março de 2010, quando o Congresso Nacional colocou um ponto final na Lei 12.305, após duas décadas de debate. "Foi um processo longo e difícil, tamanha a complexidade de se construir um marco legal que mexe com diferentes interesses e gera reflexos importantes em questões econômicas, ambientais e sociais", avalia José Valverde, assessor parlamentar que participou como coordenador técnico da versão final da Política Nacional de Resíduos Sólidos.



Tudo começou em 1989, com o Projeto de Lei 389 sobre resíduos dos serviços de saúde, apresentado no Senado. O assunto decolou nos preparativos da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992. Naquele ano, o então deputado federal Fábio Feldman (PV-SP) apresentou o Projeto de Lei 03333, para instituir a Política Nacional de Resíduos Sólidos, arquivado mais tarde. Em 1998, um movimento parlamentar culminou com a criação de uma comissão especial tendo o deputado federal Emerson Kapaz (PPS-SP) como relator.



"Não houve evolução porque optou-se por um projeto de lei detalhista, que se mostrou inviável", conta Valverde, hoje presidente do Instituto Cidadania Ambiental. Ao mesmo tempo, diz ele, o governo insistia em reforçar a responsabilidade das indústrias pelos resíduos pós-consumo, dentro do princípio do "poluidor-pagador", que não teve receptividade do setor empresarial.



Em 2002, uma segunda comissão especial foi instituída sob a liderança do ex-deputado Ivo José (PT-MG), que também não prosperou devido a conflitos de interesses. Havia a oposição de setores produtivos descontentes, principalmente da indústria de recauchutagem de pneus, que importava resíduos para operar. O relatório apresentado pela comissão em 2006 foi engavetado.



Um ano depois, o assunto voltou à tona no Congresso Nacional, dentro de novos conceitos e de um ambiente político mais favorável. O Supremo Tribunal Federal havia decidido pela proibição da importação de pneus velhos e a iniciativa privada percebeu a necessidade de apoiar um marco nacional viável, diante das restrições que surgiam com a proliferação de diversas legislações estaduais e municipais.



Em 2007, formou-se um grupo de trabalho parlamentar sob coordenação do deputado federal Arnaldo Jardim (PPS-SP), que prosperou inspirado no Projeto de Lei 1991, enviado naquele ano pelo Executivo. Entre as novidades, estavam o conceito de logística reversa do lixo reciclável para retorno às indústrias como matéria-prima, o viés social com a participação das cooperativas de catadores e a obrigatoriedade do planejamento do setor público sobre resíduos. "Depois foi agregado o conceito-chave de responsabilidade compartilhada em lugar do princípio do poluidor-pagador, superando o entrave que afastava o setor produtivo", explica Valverde.



Apesar do alto grau de consenso, até o último instante o projeto foi alvo de reivindicações. Uma delas diz respeito à incineração para gerar energia, que é combatida pelas cooperativas de catadores, mas defendida por empresas de tratamento de resíduos, e acabou incluída como possível método para a reciclagem dentro de uma lista que prevê outras prioridades, a começar pela não geração de lixo.



A lei diferenciou "resíduo" de "rejeito" para especificar que apenas o lixo não reciclável pode ser levado para aterros, iniciativa que recebeu críticas por parte das empresas que operam essas áreas de despejo. Em outro ponto, a proposta inicial priorizava o uso de material reciclado nas embalagens, mas os fabricantes levantaram riscos de perda de competitividade e o item foi extraído do texto final.



Já a obrigação da logística reversa, que entraria em vigor após a sanção da lei, passou a ter prazos definidos posteriormente, a partir dos "acordos setoriais". As propostas são convocadas pelo governo em editais e submetidas à aprovação do Comitê da Logística Reversa, criado pelo Decreto 7.404/2010, que regulamentou a lei e estabeleceu as normas para aplicá-la na prática. O acordo setorial para a reciclagem de embalagens de óleos lubrificantes será o primeiro a ser assinado este ano, segundo previsão do Ministério do Meio Ambiente. O setor de lâmpadas, com edital já lançado, deverá ser o próximo. Já o retorno obrigatório das embalagens em geral começa a valer no próximo ano.

(Valor Econômico)






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