Ciência Hoje mais trinta

Data: 27/06/2012
Ennio Candotti

a Gilberto Velho in memoriam



1. Independência política e dependência financeira, histórias de 82



Passados trinta anos a memória voa e, quando não trai, lembra. Escolhi, entre tantos, alguns pontos que, por sua atualidade, me parece vale a pena registrar. Quem sabe ajudem a pensar o presente, que politicamente me parece um tanto turvo.



Uma das questões mais delicadas que enfrentamos, na CH e na SBPC em 1982, foi a das relações políticas entre editores e financiadores: ao financiar um projeto de divulgação os órgãos públicos de fomento deveriam se envolver com a política editorial, indicar diretores, cobrar lealdades?



Vivíamos os últimos anos da ditadura (sem saber que seriam os últimos) e o embate público sobre os rumos das liberdades democráticas e da liberdade de opinião empolgava e recomendava cautela nos movimentos. Em 82 as bombas do Rio Sul ainda não haviam estourado no colo dos coronéis.



A divulgação dos dados de interesse público como, por exemplo, a dimensão das reservas minerais de Carajás, os desastres da Transamazônica ou os números da poluição em Cubatão estavam, silenciados, na ordem do dia (ver por exemplo debates e documentos da Reunião Anual de 1983 realizada em Belém).



Eram os primeiros passos de uma batalha que duraria trinta anos: a do direito de acesso à informação de dados e informações de interesse individuais ou coletivos, o Habeas Data da Constituição de 88, regulamentado nestas últimas semanas!



O poder constituído não via com simpatia a SBPC publicar uma revista empenhada em divulgar fatos da ciência e da sociedade e informações que poderiam alimentar o debate público sobre políticas do Governo: Lynaldo Cavalcanti, então presidente do CNPq, corajosamente 'comprou' o nosso projeto e concordou com o princípio que o CNPq não deveria se envolver nas responsabilidades editoriais da CH. A Finep presidida por Gerson Ferreira filho, poucos meses depois o acompanhou na decisão. Curiosidade: entre os nossos assinantes encontraríamos, poucos meses depois do lançamento, o General Golberí do Couto e Silva, influente Ministro da Casa Civil da Presidência.



Passados trinta anos ainda hoje encontramos dirigentes de agências financiadoras, em Brasília ou nos estados, que ficam indignados quando ações de Governo são criticadas em órgãos financiados por suas agências...



2. As três dimensões do projeto CH



CH deveria ser ao mesmo tempo: i. um canal de expressão da pressão da comunidade junto ao governo: lembro de alguns temas como a estabilidade e volume dos financiamentos do CNPq e Finep, mais bolsas (estávamos em menos de 10 000), criar laboratórios associados (precursores dos INTs) e também ampliar a participação das sociedades científicas nas políticas de fomento etc.



ii. Promover a articulação da comunidade científica e formar um grupo de pressão capaz de atuar em Brasília, no Conselho do CNPq, nos estados para criar as Faps (já em 82), nas universidades, institucionalizar a pesquisa científica, defender a qualificação do ensino superior e consolidar construção da pós-graduação.



iii. Por outro lado deveríamos também informar, promover a educação e popularizar a ciência e o conhecimento, sua função social. Explicar a todos os valores próprios da pesquisa científica, contribuir para a criação de museus, centros de ciências e páginas de ciência na imprensa diária e programas de TV. Um primeiro passo seria familiarizar os pesquisadores com a arte de escrever, divulgar, criar canais diretos entre "produtores e consumidores". O pesquisador deveria assim assinar o artigo em que conta o que ele faz e explica seu significado.



3. Organizar a comunidade científica em torno de quais princípios?



Direitos humanos, direito de reunião e expressão, direitos à educação, à diversidade cultural, direito à informação e à livre circulação do conhecimento, dos programas de proteção da biodiversidade e equilíbrio ecológico do meio ambiente (princípios incluídos mais tarde na Constituição de 88), os interesses coletivos na questão das patentes dos medicamentos, dos direitos reprodutivos da mulher e dos direitos das minorias e das culturas tradicionais. Além desses pontos outra questão de princípios estava (e ainda está) presente: a construção de um país e de uma sociedade mais justa e com menos diferenças no desenvolvimento social e econômico regional, preservando obviamente as diferenças históricas e culturais.



O próprio significado e legitimidade da pesquisa básica, nas áreas exatas, biológicas e humanas, ainda hoje é questionado e deve ser defendido, explicado etc. Tanto neste como nos outros princípios estamos longe de ter alcançado plenas garantias de prática e respeito.



4. Interdiscplinaridade e o papel das ciências humanas.



Um terceiro ponto, que está relacionado com o anterior é a participação das ciências humanas e sociais, na CH e no movimento de popularização da ciência e de mobilização da comunidade científica.



A SBPC, que já contava com a presença de cientistas sociais em suas diretorias, desde os anos sessenta, incluiu as ciências humanas em suas Reuniões Anuais no início de 1970. A Academia Brasileira de Ciências as incorporou em meados de 1990.



Em janeiro último participei em Bhubaneswar, no estado de Orissa, do encontro das Sociedades Cientificas Indianas e percebi que elas ainda hoje excluem as ciências sociais, a história, a antropologia e a economia (excepcionalmente este ano convidaram o economista A.Sen, para uma conferência). A Academia de Ciências Argentina ainda as exclui. Lembro disso para mostrar que, abrigar ciências humanas e sociais, exatas e naturais sob um mesmo 'guarda chuvas' não é fato trivial.



Entre nós, na SBPC na Ciência e Cultura na CH e na CHC e obviamente no Jornal da Ciência esta política multidisciplinar sempre orientou os editores e foi muito bem sucedida, contribuiu para desprovincializar as ciências exatas, abriu o horizonte dos debates e diversificou os pontos de vista com que se observa a natureza e a sociedade. Permitiu que os juízos de valor ganhassem dimensões mais consistentes, orientando "cum grano salis" opiniões, ações e publicações.



Mas, ainda estamos no começo desta caminhada, há muito chão a percorrer para que as chamadas ciências humanas ganhem um lugar estável - e o papel que lhes cabe - no panorama da política de C&T (vejam-se p.e. as discussões nos últimos dez anos em torno do fomento das ciências sociais através dos fundos setoriais ou nos mais recentes programas de apoio à inovação)



5. O novo cenário internacional e o papel das ciências humanas.



O quadro da política e da economia mundial nestes últimos anos merece também particular atenção. Dificilmente a política de C&T será nos países centrais e no mundo todo a mesma de antes de 2008. O financiamento da pesquisa sofreu forte abalo e ainda não voltou aos níveis e prioridades anteriores. Cabe perguntar se voltará.



Há também outro fator que devemos levar em consideração: centenas de milhões de homens e mulheres (lembrem dos "Damnés de la Terre" do F. Fanon), nas últimas décadas ultrapassaram a linha de pobreza e ingressaram em um mundo que busca na educação e no conhecimento garantir seus direitos de igualdade, oportunidades e cidadania. Isso vale no Brasil, na Índia, na China, no Médio Oriente, na África e em outros países.



Entender as novas tensões e conexões entre o secular e religioso na política e nas relações sociais e econômicas, na ciência e na cultura, exigirá a colaboração das ciências humanas e políticas. Elas devem nos ajudar a explicar o que está acontecendo. E, importante, contribuir para mostrar que as soluções dos atuais conflitos não são únicas e raramente encontram resposta apenas em programas tecno-científicos. Mais uma razão, portanto, para estreitar os laços de cooperação que a interdisciplinaridade, construída ao longo dos anos, nos oferece.



A omissão destes temas nas pautas das conferências internacionais dedicadas à política científica (que muitas vezes as exclui), ou à conservação do meio ambiente, revela uma certa alienação de seus mentores em geral da "comunidade das exatas e naturais". Esta miopia poderá conduzir ao isolamento político dos "exatos", o que seria grave neste momento de acirradas tensões sociais.



6. A divulgação científica para milhões



A inclusão de centenas de milhões de novos cidadãos, escolares e leitores de ciência coloca novos desafios às instituições científicas. Não apenas para a pesquisa científica em saúde, energia, na produção de alimentos e comunicações. Mas, também para a própria divulgação e popularização da ciência.



A pressão pelo respeito aos direitos humanos fundamentais, participação e conhecimento, tenderá a crescer. A demanda por tecnologias sociais, adequadas a responder aos desafios práticos dos milhões emergentes, questões por vezes elementares (mas de grande valor) como, por exemplo, a inexistência de um teste simples para saber se a água que bebemos é potável, ou questões menos elementares como encontrar uma vacina contra a malária.



Por outro lado há muito a explicar sobre o valor da ciência na sociedade e no Congresso Nacional. A recente discussão sobre o Código Florestal mostrou que os Congressistas (e seus doutos assessores) preferem adaptar a natureza às leis do que as leis à natureza. O imbróglio do Código se deve em grande parte ao fato de não ter sido levada em consideração uma advertência levantada pela SBPC, que este código deveria respeitar antes de mais nada a diversidade dos biomas e os diferentes tipos de florestas existentes em nosso extenso território. Preferiram elaborar um código único e mandaram a natureza se ajustar a ele. Deu no que deu.



Falhamos em nossa missão de esclarecer congressistas, assessores e principalmente a sociedade. As nossas explicações foram insuficientes, os nossos meios de divulgação se revelaram tímidos frente aos desafios da batalha política.



7. Papel da CH e da SBPC. As Faps de 92 e hoje



Lembrei destes pontos ao contar a vocês momentos decisivos das discussões que nos ocupavam - e também a SBPC - nos tempos em que CH foi criada. A opção editorial foi, em 82, por uma revista severa em seus parâmetros científicos e de boa qualidade gráfica, em cores e bom papel. Pensou-se em um tabloide, mais barato, em papel jornal, de maior circulação, mas, ponderou-se que sua realização seria para nós mais complexa: editorialmente e tecnicamente. Preferiu-se a primeira opção.



Precisávamos de um laboratório onde aprender a escrever, reunir informações, expressar opinião, tomar partido... exercitar o "avanti adagio". Um laboratório político de divulgação científica escrita principalmente por cientistas. Um tabloide exigiria também uma maior presença da SBPC e da CH nos diferentes estados. Esta era uma meta ainda longínqua. Um passo nesta direção seria dado, dez anos depois, com a criação de sucursais de CH e secretarias regionais da SBPC e das fundações de apoio à pesquisa nos estados.



O movimento da SBPC e da CH dos anos 80 foi importante, precedeu e preparou a inclusão na Constituição de 88 do Artigo 218 (de C&T e Faps) e logo depois a própria criação das Faps nos estados. Hoje a presença da SBPC no território nacional é muito maior, mas ainda assim perdemos a batalha do Código Florestal...



8. Os bastidores de CH



Vamos falar um pouco dos bastidores CH, da cozinha de ontem e de hoje. Em trinta anos estilos, editores, designers, jornalistas administradores se sucederam, mas curiosamente muitos deles ocuparam seus postos por longos períodos de tempo. É significativo o número dos colaboradores que tem mais de vinte anos de trabalhos contínuos na CH. Muitos deles estão nesta sala, hoje: Maria Elisa, Lindalva, Alicia, Maria Inês, Claudia, Carlos Henrique, Baltar, Marli, Alicia, Delson, Irani, Tito, Adalgisa, Theresa, Roberto Carvalho (não está aqui mas continua colaborando de Curitiba), Elisa Sinkuevicz, Yedda, Miriam Cavalcanti, Menandro, Bianca, Walter e Luiza, Carla e Shirley que foram e voltaram. Monserrat que está aqui, foi editor de CH, cuidou do JC durante mais de vinte e cinco anos! Creio que esta é a melhor demonstração de um projeto perseverante que empolgou e ainda empolga.



Devo confessar que nem eu, e creio nem Darci, Roberto, Alberto ou Otavio imaginávamos, em 82, que duraria tanto e muito menos que seriamos chamados de 'fundadores'. Espero que a jovem guarda que hoje está buscando nos arquivos a pré-história da CH devolva aos muitos protagonistas daqueles primeiros passos este grave denominativo. Lembro (após consultar os infalíveis cadernos de 82) que participaram das reuniões que prepararam o projeto CH: além de nós, também Gilberto Velho, Pedro Malan, Rui Cerqueira, Antonio Olinto, J.Murilo Carvalho, Alzira Abreu, Angelo Machado, Reinaldo Guimarães, Luiz Castro Martins, Henrique Lins de Barros, Yonne Leite, José Monserrat, Carlos e Regina Morel, Argemiro Ferreira, Claudius Ceccon, Luiz Davidovich, Moisés Nussenzweig, Sergio Ferreira, Marcelo Barcinski, Jorge Guimarães, Sergio Flacsman, George Duque Estrada, Jenny Rachle, Leonel Katz, Joaquim Falcão, Telmo Araujo e Alvaro Abreu. Roberto Lent no primeiro semestre se encontrava no exterior. Logo depois lá por 85 encontro nos cadernos o registro de Cilene na sucursal de Pernambuco e Luca em 86 como correspondente em Brasília.



É bom lembrar que a criação da CH teve fortes repercussões em SP, na sede da SBPC. É um capítulo desta história que também devemos reconstruir: Carolina Bori, José Albertino Rodrigues, José Reis, e sobretudo Alberto Carvalho da Silva e C. Pavan tiveram grande influência nas negociações que precederam o lançamento da CH.



9. Episódios de 92. A advertência de J. Murilo



Quero enfim relembrar um episódio importante na vida de CH. O menciono porque creio que se as coisas tivessem caminhado de forma um pouco diferente, não estaríamos aqui comemorando os trinta anos.



Em 1991 lançamos CHC mensal, até então um encarte bimestral, nas últimas horas de uma tempestade que havia desestabilizado as finanças de CH. Alguns números da época (n.70,71) levaram o carimbo "ameaçada de extinção". Goldemberg no MEC comprou duzentas mil assinaturas de CHC para todas as escolas. CH e CHC foram salvas.



Ocorre que em julho de 92 a SBPC e a CH alinharam-se com o movimento de indignação nacional que levaria ao afastamento de Collor da presidência. A nossa primeira, breve e incisiva, manifestação de adesão ao movimento data de fins de junho (vale aqui registrar que o texto foi redigido por Gilberto Velho e revisado antes de sua divulgação por Carolina Bori).



Na Reunião Anual de 1992, que se iniciou poucos dias depois a questão ainda estava fervendo. Exceto Ulisses Guimarães e Severo Gomes senador, que vieram manifestar sua solidariedade até a USP onde se realizava a RA, além deles apenas a Erundina prefeita de SP, Marilena Chauí Secretária de Cultura e Eduardo Suplicy já senador (eles participaram da abertura no Municipal). Os demais políticos alguns sócios e próximos à SBPC nos evitaram.



Helio Jaguaribe, ministro da C&T, determinou a Lyndolpho de Carvalho Dias, presidente do CNPq, que cortasse os recursos da SBPC para a realização da RA. Lindolpho sabiamente respondeu que já haviam sido repassados... Ao finalizar a RA as manifestações dos estudantes e o sensível quadro político de Brasília, indicavam que a crise estava se ampliando com grande velocidade.



Contei isso porque hoje, refletindo sobre as advertências de José Murilo e de Wanderley Guilherme dos Santos, que na época consideravam um equivoco político promover a desetabilização do Governo, dou-lhes razão. Talvez os anos me tenham tornado mais cauteloso. Ou talvez por observar que, passados vinte anos, as fontes dos desmandos que tanto nos indignavam continuam a 'operar' impunemente. A indignação é sempre necessária, mas não suficiente para mudar os rumos da história.



O risco para a SBPC e para CH alinhar-se com o movimento de indignação nacional, naquele momento, foi muito alto. Poderíamos não estar aqui comemorando os trinta anos.



10. Política em ciência: máscara ou remo



Nem por isso creio eu que deva-se optar sempre por políticas cautelosas, refugiando-se por trás da máscara que ordena a uma Sociedade Cientifica, divulgar fatos ou opiniões baseadas em "ciência" apenas. Seria um equivoco maior. Fazemos política em ciência por dever cívico e necessidade, não por opção.



Direitos humanos e instituições científicas para se consolidarem em nosso país ainda precisam de muito apoio e compreensão da sociedade. Vejam por exemplo a discussão corrente sobre os fundos setoriais, as novas fontes de financiamento da pesquisa científica e o fomento à inovação e as "tecnologias sociais".



Creio enfim que vivemos um momento de intensas tensões políticas e econômicas - e, insisto, com dimensões internacionais pouco familiares à comunidade científica. É um momento em que, a meu ver, CH e a SBPC deveriam reavaliar suas distâncias editoriais e políticas, - tenho a impressão que andam excessivamente afastadas - aproximar-se, repensar as dimensões nacionais, científicas e sociais, do projeto que as une. Em homenagem aos jovens de menos de trinta anos.


Ennio Candotti, físico, vice-presidente da SBPC.
este artigo é um registro de memórias que ele elaborou por ocasião da comemoração dos trinta anos da Ciência Hoje, no último dia 14 de junho.




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