Enterrados, mas vivos

Data: 21/11/2011
Quanto mais se conhece a cidade de São Paulo, menos se imagina a possibilidade de existirem rios e córregos próximos a grandes avenidas ou empreendimentos imobiliários. Essa situação é tida como verdadeira pela imensa maioria dos paulistanos. Mas é um engano. Correm pelo subterrâneo da capital cerca de 1.500 quilômetros de rios ocultos, tampados ou canalizados durante os intensos processos de urbanização e industrialização vividos pela cidade a partir da segunda metade do século XX.

No entanto, há sete anos esses cursos d’água são objeto de estudo do professor Vladimir Bartalini, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Ele se dedica a pesquisar pequenos córregos e rios que ocupam posição secundária na hierarquia da bacia hidrográfica paulistana. O professor defende que parte desses rios ocultados deveria voltar à cena urbana da cidade e, principalmente, à consciência coletiva.

“Esses córregos têm de ser trazidos de volta, porque existem, são usados por nós – mesmo que para finalidades pouco nobres (como despejo de esgoto). Não há como negá-los”, diz o professor. “Os rios podem ser reincorporados à paisagem urbana como percursos para pedestres e ciclistas, espaços de lazer e áreas que prestam serviços ambientais, como a drenagem da água das chuvas.” [1">

[1"> Vladimir Bartalini amplia a discussão em seu estudo “Redes capilares de drenagem e parques públicos urbanos”, disponível no site anpur.org.br

Bartalini explica que, quando o rio corre no seu leito original, o fluxo de água é mais lento e as margens ajudam a absorver a água da chuva. Com o tamponamento ou a canalização desses rios e córregos, a velocidade e a quantidade de água aumentam, porque nada é absorvido pela terra. Tudo isso potencializa os efeitos das inundações que sempre ocorrem no verão paulistano.

Mas trazê-los de volta à superfície nem sempre é possível ou conveniente. Há pontos da cidade que comportam empreendimentos e grandes obras que soterraram vários desses rios e é impossível sua recuperação.

Segundo Bartalini, mesmo que os corpos d’água voltem a correr a céu aberto, a “renaturalização” completa é algo impossível. Mas há muito que se pode fazer nos locais onde os córregos e rios estão apenas cobertos, escondidos dos olhos e dos cuidados das pessoas.

O desinteresse da sociedade com o que ocorreu com os rios da cidade nas últimas cinco décadas é uma preocupação compartilhada pelosos amigos José Roberto Bueno, arquiteto, e Luiz de Campos Junior, geógrafo. Eles são fundadores do movimento Rios e Ruas, que mobiliza grupos de pessoas interessadas em percorrer a cidade para redescobrir nascentes, rios e córregos escondidos. [2">

[2"> As expedições dos amigos José Roberto Bueno e Luiz de Campos Jr. podem ser vistas em facebook/rios e ruas, onde postam fotos e relatos de experiências

As expedições dos amigos JoséRoberto Bueno e Luiz de Campos Jr. podem ser vistas em facebook/rios e ruas, onde postam fotos e relatos de experiênciasA máxima do movimento é que “não importa onde você esteja em São Paulo, a 200 metros de você deve haver um curso d’água”. A principal reação que eles veem em quem participa das expedições é a surpresa ao descobrir que o rio pode estar coberto, sujo, soterrado, mas existe e está vivo.

“Essa é uma maneira de mostrar para as pessoas e para a cidade que é uma mentira dizer que os rios de São Paulo acabaram. Essa mentira foi muito bem contada, é quase um transe. E nós trabalhamos para despertá- las desse transe”, observa Bueno, que vê a ocultação dos rios como facilitador para o crescimento do setor imobiliário e grandes obras viárias. “As pessoas não veem os rios, logo eles não existem. Aí essa ocultação se mostra conveniente.”

A descoberta mais recente da dupla aconteceu na área da Universidade de São Paulo que foi desmatada, em outubro, para a construção de um museu. “Além das mais de 1.300 árvores derrubadas, descobrimos no local duas nascentes que correm o risco de serem soterradas”, revela Bueno.

“Queremos despertar as pessoas criando uma consciência coletiva sobre a importância dos rios, córregos ou riachos, e também para que possamos cobrar um melhor tratamento para esses cursos d’água”, afirma Luiz de Campos Junior.

Bartalini explica que dos cerca de 1.500 quilômetros de rios ocultos de São Paulo, 500 são de córregos que se confundem com becos, vielas, situações espaciais tidas como excrescências urbanas. Muitos deles estão poluídos, o que é perceptível pelo mau cheiro que sai dos bueiros. Muitas vezes, os próprios cidadãos pedem à prefeitura para tapar o córrego, escondendo o problema.

Combater essa lógica que substitui o cuidado e o tratamento pelo disfarce e a ignorância é um trabalho que começa a ganhar corpo, seja pelos estudos do professor Bartalini, seja pelo trabalho in loco do Rios e Ruas, que nos últimos anos viu o número de exploradores passar de 5 para mais de 20 por expedição.

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