Desafios práticos à emergência socioambiental

Data: 30/09/2011
Por Christian Travassos (*)

Este artigo baseia-se em uma das seções da dissertação de mestrado “Responsabilidade socioambiental das empresas no varejo e comércio justo: um estudo sobre o programa Caras do Brasil, do Grupo Pão de Açúcar”, concluída pelo autor em 2010. O estudo abordou fundamentos práticos e teóricos sobre os quais se assenta o programa, de modo a analisar o surgimento e amadurecimento de uma iniciativa de responsabilidade socioambiental promovida por uma grande empresa do varejo nacional. O trabalho está disponível no site da Plurale, junto a um artigo que resume seus resultados. Aqui, enfocamos os desafios que permeiam estratégias de responsabilidade socioambiental das empresas sob o ponto de vista prático ou, como se costuma dizer, “no campo”.

Isso significa analisar as tensões que envolvem a emergência socioambiental, expressão cunhada por Veiga (2007), traduzida por novas iniciativas empresariais pautadas por valores como ética, sustentabilidade, responsabilidade etc., em meio a ambientes marcados por padrões individualistas, produtivistas, utilitaristas, competitivos. Na realidade, a responsabilidade socioambiental das empresas dialoga com processos de conscientização que perpassam toda cadeia produtiva, com um conjunto de instrumentos que têm sido buscados para o fortalecimento de práticas mais responsáveis e éticas nos mercados.

Dessa maneira, a estratégia de aproveitar o que, por ora, se revela um nicho de mercado ético, no qual o consumidor valora condições econômicas, sociais e ambientais, envolve uma série de tensões. Dentre estas, destaca-se o fato de o comprometimento individual e empresarial com causas sociais e ambientais estar sujeito aos conflitos que caracterizam a ação coletiva. Em outras palavras, agir de modo comprometido com princípios socioambientais implica em custos para 1) trabalhadores – numa comunidade ou associação; 2) consumidores – no mercado; e 3) empresas – em seus processos de produção e comercialização.

Essas tensões subjazem o desenvolvimento de estratégias apoiadas em conceitos como desenvolvimento local sustentável, responsabilidade socioambiental das empresas, comércio justo e economia solidária. Ainda assim, como a principal dificuldade relatada por micro e pequenos produtores, cooperativas e associações populares costuma se dar não no processo de produção, mas na colocação de seus produtos e serviços no mercado, essas iniciativas abrem novas oportunidades de negócio ao longo da cadeia produtiva.

Com efeito, ao lidar com padrões culturais individualistas e produtivistas concomitantes a aspirações éticas, a empresa interage com uma rede complexa de escolhas e comportamentos. Sob este ponto de vista, um dos estudos protagonistas da obra de Norbert Elias mostra-se particularmente oportuno para esta problematização: Os estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade (Elias, 2000).

Neste, o autor esmiúça as relações que permeiam o dia-a-dia de famílias residentes em três áreas distintas da comunidade inglesa de Winston Parva, sendo que as Zonas 1 e 2 eram ocupadas por moradores antigos, enquanto que na Zona 3 viviam famílias imigrantes atraídas por oportunidades de trabalho nas fábricas locais. As Zonas 2 e 3 eram igualmente bairros operários, enquanto a Zona 1 possuía indicadores próprios de um bairro de classe média.

Apesar de aparentar relativa homogeneidade de acordo com indicadores como renda e escolaridade, Winston Parva apresentava uma divisão que se tornou evidente com o amadurecimento do estudo. A principal razão para tal, porém, derivava de um fato até então pouco estudado: o que realmente diferenciava aqueles que se consideravam “dignos de respeito” dos “mal lavados” não eram distintos níveis de renda ou ocupação profissional, mas o fato de uma parcela da população residir há mais tempo no local do que a outra. Os estabelecidos eram detentores de um sólido poder de uma comunidade estreitamente unida, enquanto os outsiders, não.

Nesse embate, não estão em jogo, portanto, diferenças sociais, econômicas, raciais, étnicas ou religiosas, mas dotações distintas de poder, embora estas possam resultar, com o tempo, em déficits intelectuais e afetivos pelo agravamento da exclusão. Em Winston Parva, ou em qualquer lugar, variados conflitos que caracterizam o ambiente local justificam a atenção de qualquer iniciativa que envolva o engajamento em torno de objetivos comuns.

Assim, gerentes de projeto, mediadores e educadores que levam adiante propostas socioambientais, cooperativas, associativas e/ou comunitárias deparam-se com diferenciais de poder que vão do ambiente local ao mercado de produtos reconhecidamente éticos. Convivem com expectativas, culturas e assimetrias enraizadas em indivíduos, comunidades e empresas.

Nesse sentido, chama atenção no estudo sobre o programa Caras do Brasil (Travassos, 2010), que, entre os sete fornecedores entrevistados que deixaram de abastecer as gôndolas dos supermercados Pão de Açúcar, termos três associações, duas cooperativas e uma OSCIP. Não que o engajamento comunitário em torno de objetivos comuns seja inviável, mas este costuma vingar onde já existe aproximação anterior, laços prévios ou redes de parentesco.

Nesse momento, surge a figura do mediador. Para Novaes (1994), o isolamento, a assimetria e a dominação política e econômica têm produzido necessidades de mediação tanto para a reprodução quanto para o questionamento dessa dominação. Já Martins (1991) alerta para o imediatismo próprio da classe média, de que normalmente fazem parte os agentes de mediação, que muitas vezes os leva a subestimar processos locais, transformando-os numa questão meramente administrativa. Como no caso de Singer (2002), em que o autor afirma que o desafio para o cooperativismo no Brasil está em convencer os trabalhadores a se unirem.

É bem verdade que, da década de 1990 para cá, iniciativas diversas ligadas ao Terceiro Setor contribuíram para aperfeiçoar essa mediação, mas tal problematização não deixa de ser pertinente, tendo em vista a multiplicação de iniciativas. Como a proposta do mediador caminha por uma interdisciplinaridade, ele precisa de habilidade para dialogar com tantas visões distintas e defender seu argumento diante da reatividade dos ambientes prático e científico.

Desse modo, ao buscarmos (re)conhecer um conjunto de estratégias em nome do desenvolvimento de uma consciência mais ética e responsável, percebemos que o comportamento das pessoas pode confluir nesse sentido, mas que absolutamente não se restringe a ele. Seus contextos familiares, valores culturais e redes sociais exercerão influência fundamental sobre suas escolhas.

Cabe, portanto, considerar que experiências apoiadas na emergência socioambiental envolvem subjetividades e códigos institucionalizados, seja no ambiente local, na produção ou no mercado. Não é razoável contar com comprometimentos "naturais" em meio a realidades onde a lógica utilitarista tornou-se hegemônica e referência de códigos, símbolos e valores. Seria ingenuidade pensar que pessoas imersas em verdadeiras teias de condicionamentos, onde são exaltados comportamentos e atitudes individualistas, assumiriam uma postura ética e cooperativa de uma hora para outra. Isso vale para trabalhadores no ambiente de produção face à cooperação, para consumidores no mercado, diante dos valores do comércio justo, e para o ambiente corporativo.

(*) Por Christian Travassos, economista e mestre em Ciências Sociais (CPDA/UFRRJ)



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L.. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

MARTINS, José de S. A chegada do estranho. São Paulo, Hucitec, 1991.

NOVAES, Regina R.. A mediação no campo: entre a polissemia e a banalização. In: MEDEIROS, Leonilde S. et al (orgs.). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Editora UNESP, 1994.

SINGER, Paul. A recente ressurreição da economia solidária no Brasil. In: SANTOS, Boaventura de Souza [org.">. Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

TRAVASSOS, Christian. Responsabilidade socioambiental das empresas no varejo e comércio justo: um estudo sobre o programa Caras do Brasil, do Grupo Pão de Açúcar. 2010. Dissertação (Mestrado de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade). Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2010.

VEIGA, J. E. da. A Emergência Socioambiental. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007.


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