O impensável bate à porta

Data: 25/07/2011
O avanço da tecnologia tem efeitos surpreendentes, mas não de todo imprevistos. Nos momentos mais críticos desse avanço, as previsões da ciência, a imaginação dos autores de ficção científica e a especulação dos filósofos podem convergir. Hoje, cientistas e futurólogos veem no horizonte a concretização de ideias até ontem fantasiosas, como implantes cerebrais e as inteligências artificiais comparáveis à humana. Também poderá haver em breve cérebros conectados por cabos, máquinas que o pensamento pode comandar e ondas cerebrais copiadas para computadores.



A partir de suas pesquisas, o neurocientista Miguel Nicolelis escreve em seu livro recém-lançado, "Muito Além do Nosso Eu" (Companhia das Letras), que, graças às tecnologias de interface cérebro-máquina (ICM), "em algumas gerações, o desenvolvimento tecnológico capacitará nossos descendentes a realizar ações e experimentar sensações que poucos seriam capazes de imaginar hoje em dia". Nicolelis trabalha com a recuperação de faculdades perdidas por pacientes: "Esses pacientes poderão enfim recuperar, num futuro não muito distante, a mobilidade e a sensibilidade de seus corpos inertes, por meio do uso de uma série de neuropróteses". Mas, segundo o cientista, "as futuras aplicações de ICMs prometem avançar muito além dos limites da medicina".



Para o escritor inglês Simon Ings, "sem as ferramentas da ficção científica, está ficando difícil falar sobre o que acontece". Ings é autor de romances de ficção científica como "Hot Head" (1992) e "Headlong" (1999). Em "Headlong", Ings diz, da perspectiva do futuro, que "quando as máquinas tomaram conta, foi de uma forma tão rápida, suave e útil que só um tolo ou um profeta reclamariam". O historiador da ciência canadense George Dyson cita Ings para falar do presente. "As máquinas já tomaram conta. Se alguém do século XIX se materializasse hoje, diria que somos dominados pela inteligência artificial. Veria todo mundo fazendo o que manda seu iPhone."



Não é comum a ficção científica se mostrar otimista. A maior parte das obras expressa preocupações com o potencial destruidor da fronteira tecnológica. Nicolelis lamenta as tendências negativas do gênero. "Qualquer ideia e qualquer tecnologia podem ser usadas para o mal. Aprendi na faculdade a usar uma caneta para fazer a traqueotomia, mas sei que ela também serve para perfurar a carótida de alguém. Se formos calibrar nosso modo de ação por esse risco, não vamos fazer nada, nem sairíamos de casa." Para o neurocientista, filmes como "Matrix" (1999) e "Blade Runner" (1982) produzem uma impressão negativa dos avanços tecnológicos. "Li muitas coisas tenebrosas sobre a ciência nos últimos anos. O medo virou moda e tem gente que o usa para se vender." Para o autor, o potencial construtivo e medicinal da pesquisa científica ultrapassa amplamente os riscos. "Existe uma oportunidade única para que o futuro seja muito melhor, se tomarmos nosso destino nas mãos. No livro, eu quis dar uma visão esperançosa e humanística."



As distopias são mais frequentes na ficção científica, segundo Ings, porque o gênero trabalha não com o futuro, mas com o presente. "O interessante no gênero não é o que ele inventa, mas o que não inventa", diz. A verdadeira arte da ficção científica, portanto, consiste em tomar as ideias que estão no ar e levá-las ao paroxismo. "O que acontece se formos até o fundo com isso? Eis a pergunta que um autor se faz." Segundo Colin McGinn, filósofo inglês, "há invenções que, quando surgem, parecem ótimas, mas, olhadas em retrospecto, dizemos: 'Céus, que horror!' O texto clássico a esse respeito é 'Frankenstein', de Mary Shelley, que explicita esse ponto: algo feito com ótima intenção, para o bem da humanidade, mas que resulta em catástrofe."



O "gênio maligno" foi a figura imaginada por René Descartes para introduzir o ceticismo que sua filosofia deveria derrubar. Como saber que todas as nossas percepções não são implantadas em nossa cabeça por esse gênio maligno, só para nos enganar? Descartes escreveu no século XVII e não podia imaginar as formas alternativas que seu personagem tomaria. A enorme matriz informática que comanda o mundo no filme "Matrix" nada mais é do que uma leitura cibernética do personagem de Descartes.



"O ceticismo é assustador, por isso o ensino da filosofia começa por ele. Os alunos logo veem que podemos ser todos 'cérebros em provetas'", diz McGinn. O "cérebro na proveta" ("brain in a vat") é a imagem moderna do gênio maligno. Conservado vivo numa solução nutritiva, um cérebro recebe estímulos de um computador, que o leva a pensar que existe um mundo externo, que ele tem um corpo, que ele atravessou uma vida inteira e guardou lembranças dela. Como certificar-se de que não somos cérebros em provetas? "Os filósofos trabalharam muito nessa questão e posso dizer qual é a resposta: não há resposta."



Outro tema filosófico que segue atual é o solipsismo ou "ceticismo das outras mentes". Como uma pessoa consciente pode ter certeza de que as outras pessoas têm uma mente como a sua? Como se assegurar de que todos os outros não são autômatos, robôs feitos para agir como se tivessem emoções e consciência? O escritor de ficção científica americano Philip K. Dick explorou esse impasse em suas consequências mais extremas no livro "Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?" (1968). Adaptado para o cinema por Ridley Scott, o livro se tornaria "Blade Runner". Na história, autômatos com tecidos biológicos, consciência de si e memórias de infância se passam por humanos e só podem ser desmascarados com um teste bastante complexo.



Deixando de lado as projeções tenebrosas, a aplicação positiva mais próxima de se realizar para a interação entre o cérebro e as máquinas é a recuperação de pessoas com deficiências físicas. Nicolelis pretende desenvolver uma neuroprótese em forma de exoesqueleto a tempo de colocar uma pessoa até então paraplégica para dar o pontapé inicial da Copa do Mundo de 2014. "Dá tempo, só depende de conseguirmos o financiamento para as pesquisas", diz o neurocientista. Os resultados conseguidos até agora - um dispositivo pelo qual um primata controla um braço mecânico com o pensamento e a conexão, por cabos, dos cérebros de dois camundongos, entre outros - têm despertado o interesse das agências de financiamento, segundo Nicolelis, que se mostra otimista. "O desafio é menos complexo do que aquele anunciado por John Kennedy em 1963, de atingir a Lua. É importante estabelecer metas ambiciosas, não só para se motivar, mas também para engajar toda a sociedade para vitórias científicas."



A aproximação entre o corpo humano e a máquina desperta o interesse de teóricos tanto pelas possibilidades quanto pelas dificuldades que abre. No campo da filosofia da mente, o filósofo João de Fernandes Teixeira, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e autor de "A Mente Pós-Evolutiva", discute a tendência à fusão do biológico com o tecnológico com o conceito de parabiose. "O ser humano produziu a civilização, que passou a reduzir a possibilidade de seleção natural. Por isso, o corpo humano e, em especial, o cérebro não podem mais mudar radicalmente", explica Teixeira. A realidade continua se modificando, não tanto pela evolução genética, mas pela associação homem-máquina, isto é, a parabiose. "Já vivemos acoplados a máquinas, mas a parabiose será um outro passo, quando introduzirmos de forma mais efetiva máquinas no nosso corpo, especialmente no nosso cérebro, para que ele possa se tornar mais poderoso."



Confira a íntegra da reportagem especial no link, para assinantes: http://www.valoronline.com.br/impresso/cultura/111/460153/o-impensavel-bate-a-porta

(Valor Econômico)





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