Desta água não beberás

Data: 25/04/2011

Desta água não beberás


São sete horas da manhã de um dia de calor na Cidade de Buenos Aires. Estamos prestes a embarcar em um pequeno bote para percorrer o Riachuelo, o curso d´água mais contaminado da Argentina. Nosso anfitrião, Felix Cariboni, do Greenpeace Argentina explica: “Não é que eu quisesse fazer ninguém acordar cedo, mas depois das 10 da manhã, com o calor que está fazendo, fica impossível o passeio de barco pelo rio. O cheiro é insuportável.” Não era exagero. Mesmo se cuidando com a hora, esta repórter passou o dia inteiro com dores de cabeça e sem nenhum apetite depois de duas horas de passeio.
Essa triste história começa no final do século XIX, auge do período agroexportador da Argentina, quando os frigoríficos e, com presença ainda maior na época, as curtidoras de couro começaram a usar o Riachuelo para despejar os restos dos animais que não serviam nem para comer nem para vestir.
Na virada do século, chegaram as metalúrgicas, os estaleiros e as oficinas ferroviárias. Com a grande expansão industrial da Argentina entre os anos 1930 e 1960, o processo de concentração industrial na área se intensificou e até hoje o Riachuelo, que marca o limite a sul e a leste entre a Capital Federal e o estado de Buenos Aires, é um curso d´água onde é possível encontrar chumbo, cromo, cádmio, mercúrio, mas onde há mais de 100 anos não há oxigênio. Na bacia estão instaladas cerca de 20 mil empresas e 40% do PIB da Argentina vêm daí.
Nosso passeio começa em um dos lugares mais turísticos de Buenos Aires. Ali se consagrou Maradona com a camiseta azul e amarela de um dos maiores times de futebol da Argentina. La Boca, o famoso bairro portenho, cheio de casas coloridas em seu Caminito, foi testemunha do nascimento de uma grande cidade latino americana, de glórias futebolísticas e de uma triste história sobre descaso, contaminação e falta de iniciativa política.
Já nos primeiros cinco minutos do percurso, encontramos um antigo navio, de alguma das empresas falidas que outrora estiveram instaladas às margens do Riachuelo, quando aí ainda havia um porto e as águas eram mais profundas por conta das constantes dragagens. É um dos três gigantes que continuam apodrecendo no rio enquanto esperam a que se cumpra a ordem de retirá-los daí.
Se as indústrias que já não estão são um problema, as que permanecem nem se fala. Muitas não se preocupam em respeitar sequer os padrões internacionais, que, segundo Félix, são insuficientes pela condição particular de concentração industrial na zona. Para piorar, não são apenas as indústrias da margem que despejam seus resíduos no Riachuelo. “Muitas que estão mais longe da margem tratam uma pequena parte dos resíduos e despejam a maior parte por meio de conexões clandestinas a desembocaduras pluviais, o que barateia os custos”, afirma. “Existe forma de controlar isso, comparando a produção com o volume de resíduos tratados, por exemplo, mas o que não existe é vontade política”, denuncia. “O principio básico de sanear, que é deixar de contaminar, ainda não está posto em prática”, completa.
Filho feio não tem pai
Os 2.240 km² de extensão e o fato de que o rio é federal, mas banha tanto a província quanto a cidade de Buenos Aires geraram um problema de magnitudes proporcionais ao seu tamanho. Como nunca esteve claro de quem era o problema da contaminação, nunca ninguém fez nada. Até novembro de 2006, limpar o Riachuelo era um eterno jogo de empurra-empurra entre os governos nacional, estadual e municipal.
Foi uma iniciativa de moradores dos bairros afetados pela contaminação no rio que gerou o primeiro passo para resolver o impasse institucional. Em 2004, os vizinhos decidiram entrar com um processo judicial para exigir o saneamento do rio e ressarcimento pelos danos sofridos por conta da poluição. A Corte Suprema da Argentina sentenciou então que os governos deveriam se unir para propor um Plano Integrado de Saneamento Ambiental (PISA) do Riachuelo. Se criou também um órgão público intergovernamental para executar o plano. A Autoridad de Cuenca Matanza Riachuelo (Acumar) reúne representantes nacionais, estaduais e municipais e está presidida pelo ministro de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Nação.
Como o Ministério Público se absteve de participar do caso, o povo está representado por um Cuerpo Colegiado, formado pela Defensoria Pública e um conjunto de organizações ambientais que também fazem o controle e o monitoramento da aplicação do PISA pela Acumar. Plurale tentou falar com representantes do órgão, mas foi informada por meio de assessoria de imprensa que preferiam manter “baixo perfil” com os meios de comunicação.
Segundo Andrés Nápoli, diretor da Área Riachuelo da Fundación Ambiente y Recursos Naturales (FARN), uma das que fazem parte do Cuerpo Colegiado, a criação da Acumar é positiva no sentido de que agora existe um organismo centralizado para tomar decisões e a quem reclamar soluções. Ele ressalta também a importância dos censos industriais. “Pela primeira vez na história sabemos a quantidade de indústrias instaladas aí.”
Mas a Acumar não vai muito além, segundo Nápoli. “Todas as decisões são tomadas a partir de sentenças judiciais. Todos os prazos estipulados pela Corte Suprema estão vencidos. Desde os de adaptação das indústrias a um modelo de desenvolvimento sustentável aos de relocalização da população que vive às margens do rio.” Neste caso, as autoridades correspondentes de cada governo são multadas e, como no caso do último ministro de Meio Ambiente do país, chegam a perder cargos pelo custo político da sanção.
Mesmo assim, a realidade não muda muito. Depois do encontro com o navio, passamos por uma das muitas villas (favelas) instaladas às margens do rio. A concentração industrial na zona do Riachuelo e a falta de políticas sérias de habitação fizeram com que, desde o início da Argentina como estado nacional, esta seja também a zona de maior concentração populacional, onde grande parte dos moradores sobrevivem sem serviço de esgoto ou água potável. “Não há terras nas zonas centrais, o acesso à moradia é difícil. E essa população está vulnerável a inundações e exposta ao esgoto cru que corre ao lado de suas casas”, aponta Andrés.
Félix Cariboni explica que o esgoto bruto jogado no Riachuelo pelos moradores dos assentamentos precários das margens não é o maior problema. Durante os anos 90, no governo de Carlos Menem, a privatização do sistema de esgotos – reestatizado em 2006 - foi fatal para o Riachuelo. “O investimento em obras públicas diminuiu muito e, ao mesmo tempo, Buenos Aires e a Grande Buenos Aires cresceram muito”, aponta. Curiosamente, as primeiras leis ambientais da Argentina começam a aparecer na mesma época. “O meio ambiente é que não percebeu”, brinca Andrés Nápoli.
Pela margem direita do Riachuelo chegam os dejetos do estado de Buenos Aires, entre eles o do município de La Matanza – o segundo maior do país em população -, que vem quase todo sem tratamento. Do lado da capital, o esgoto só chega no Riachuelo quando supera a capacidade da rede e se abrem os tubos, o que se torna um grande problema para uma rede que há mais de 20 anos cresce em desproporção à população que atende.
Se o cenário já era complexo, outro problema surgiu nos últimos anos. Com a ausência do Estado e falta de políticas públicas que atendam a população do Riachuelo em suas necessidades básicas de moradia, água potável e direito à vida, começaram a aparecer depósitos clandestinos de lixo a céu aberto. “Para não gastar dinheiro com o tratamento do lixo, que corresponde à Coordinación Ecológica Area Metropolitana (CEAMSE), muitos subornam os punteros (algo parecido a um líder comunitário) para que permitam jogar o lixo aí”, afirma Félix, enquanto passamos por um monte de sacos plásticos que quase parecem fazer parte da paisagem.


O Riachuelo que todos queremos
Félix Cariboni e Andrés Nápoli coincidem em que uma parte importante da tarefa de sanear o Riachuelo é que ele seja recuperado como espaço público. Relocalizar a população que mora nas margens em moradias dignas, igualmente centrais, poderia abrir espaço para liberar os 35 metros da margem que propõe o PISA e que as pessoas possam voltar a frequentar o lugar. “As pessoas têm que recuperar o Riachuelo, desfrutá-lo. O direito a desfrutar o espaço hídrico tem a ver com o direito à qualidade de vida, que é o que determina a Corte Suprema quando fala do saneamento do Riachuelo”, enfatiza Andrés.
“Fala-se de sanear para uso recreativo-passivo, ou seja, que se possa usar o entorno do rio, mas não suas águas. Nós exigimos que o uso seja abrangente à água, porque sanear pela metade não é sanear”, desafia Félix. “Sou de uma geração que nunca viu o Riachuelo limpo, que escutou muitas promessas e nenhuma ação. É difícil convencer que com vontade política é possível recuperar este espaço e usá-lo como rio”, lamenta.
Enquanto isso, às margens do Riachuelo, meninos ficando azuis acenavam para o bote da porta de suas casas.

Plurale


< voltar