O flagelo da água

Data: 20/01/2011

O flagelo da água



Roberto Saturnino Braga,
Dizer algo que valha sobre as vidas perdidas na tragédia não é possível. Nada compensa, nada alivia a dor, nada pode ser oferecido além da solidariedade, do amor e do respeito ao luto.

Mas a água, que é uma das maiores riquezas do Brasil, é também, definitivamente, o nosso maior flagelo. Países afetados por terremotos desenvolvem técnicas para dar às suas construções capacidade maior de resistência ante esses movimentos tectônicos. A nós cabe o desafio de criar um urbanismo das tempestades. Nesse urbanismo haverá muita técnica, por certo, na classificação das áreas habitáveis, no traçado dos arruamentos, nas obras de estabilização de terrenos, de contenção de encostas e de manejo das águas, assim como, evidentemente, as técnicas de previsão do tempo com divulgação de alertas. E nós já temos no Brasil o domínio dessas técnicas de engenharia.

A parte técnica, entretanto, não é tudo, e com certeza é a de mais fácil domínio. A mais difícil, como costuma ser, é a parte política. Qual seja, a de estabelecer, legal e politicamente, procedimentos para demarcar com rigor as áreas de risco e retirar delas seus moradores, que só estão lá por falta de alternativa, com o poder de convencimento e o oferecimento de outro local aceitável. Temos finalmente um regime democrático e será preciso, também ter leis claras e explícitas que, resguardando direitos humanos e patrimoniais, ajudem o poder público no cumprimento desses objetivos.

Não creio seja difícil formular essas condições e esses procedimentos. Implementá-los, entretanto, não é fácil. A política é sempre mais difícil do que a técnica. E também mais importante, já que se trata de manejar relações com e entre seres humanos. Exige pertinácia, firmeza e tempo mais extenso que o curto prazo dos chamados “choques de ordem”.

Tudo isso não é novidade; o Clube de Engenharia promoveu recentemente um seminário que apontou com clareza esses caminhos. Os da técnica e os da política. Tecnicamente, nossa capacidade está provada, e eu creio que o amadurecimento político da nossa sociedade vai permitir que essas rotas sejam seguidas ao curso desta década que se abre com este janeiro violentamente chuvoso.

Entretanto, caros amigos, uma tromba dágua das dimensões desta que se despejou na serra fluminense na semana passada é realmente, e absolutamente, excepcional, além do alcance de qualquer política de prevenção. Nunca vi nada igual. Ninguém classificaria como área de risco terrenos que foram varridos por correntezas caudalosas, nem vales que foram soterrados por desabamentos de encostas intocadas e arborizadas, tidas como estabilizadas. E aí, justamente, se põe outra questão.

Trombas dágua sempre existiram e a Serra dos Órgãos é um dos locais preferidos pelas nossas chuvas grossas. Mas a violência desta última, associada ao noticiário que mostra os recentes e recorrentes alagamentos em São Paulo, capital e interior, as de Santa Catarina no ano passado, as enchentes que submergiram cidades inteiras na Austrália, as montanhas de neve que caíram há pouco sobre a Europa e os Estados Unidos, tudo isso constitui um conjunto de fenômenos climáticos excepcionais de tal grandeza e tal destrutividade que inevitavelmente conduzem à pergunta: será uma vingança da Natureza contra as nossas agressões?

É bem possível pensar que sim, apesar dos pareceres de técnicos e cientistas mostrando que mudanças climáticas profundas sempre ocorreram naturalmente no nosso planeta ao longo das eras. Aí estaria a diferença fundamental: na velocidade dessas transformações, que estariam ocorrendo ao longo de séculos e não de eras medidas em milênios. De qualquer maneira, qualquer que seja a crença, é mais que prudente admitir a hipótese de mudanças excepcionais provocadas pela agressão humana. E tomar as medidas para reduzir ao máximo a intensidade desta agressão.

Só que, a partir desta perspectiva, as medidas de salvação terão de ser muito mais drásticas do que obras de contenção, de urbanização e de manejo de águas. Terão que mudar profundamente todo o estilo de vida da humanidade de hoje, reduzindo muito o consumo de energia, e a ação política terá de ter uma alçada planetária. Mil vezes mais difícil e complicada. Mas não é por isso que não deva ser buscada, tentada, iniciada pelo menos. Houve um iniciozinho, sim, mas muito débil, muito pusilânime, é preciso falar e falar mais, uma fala condoreira que mobilize a humanidade, criar condições para a política arrostar o capital.

Plurale


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