Caudal de ameaças

Data: 30/12/2010

Caudal de ameaças


O conflito entre Costa Rica e Nicarágua pelo rio San Juan mascara um conjunto de atividades com potencial para danificar o valioso patrimônio natural dessa região.

Manágua, Nicarágua, 27 de dezembro (Terramérica) – O Rio San Juan, foco de discórdia histórica e conflitos diplomáticos entre Costa Rica e Nicarágua, está cercado nas duas margens por projetos econômicos que, segundo cientistas e ambientalistas, alterariam para sempre a vida do maior curso de água da América Central. Segundo o biólogo Salvador Montenegro, diretor do Centro para a Pesquisa em Recursos Aquáticos da Nicarágua, um projeto hidrelétrico dos governos do Brasil e da Nicarágua, em 2007, afetaria gravemente a biodiversidade do San Juan e as reservas naturais de seu entorno.

Salvador explicou ao Terramérica que a projetada Hidrelétrica Brito Sociedade Anônima (Hidrobrito S/A) exigirá uma represa de dez metros de altura e 400 metros de largura para elevar o nível das águas e reverter o curso natural de deságue do Grande Lago Cocibolca do Mar do Caribe para o Oceano Pacífico. A obra, que está em estudo e deverá ser concluída em 2015, tem custo superior a US$ 900 milhões e, segundo os ministérios de Energia e Minas e do Meio Ambiente e Recursos Naturais da Nicarágua, vai gerar 250 megawatts de eletricidade.

Para Salvador, o dano às espécies do San Juan seria “catastrófico”. A represa afetaria a biodiversidade do Grande Lago e dos rios, os ecossistemas terrestres, aquáticos e marinhos, a pesca artesanal e as áreas de cultivo das comunidades assentadas nas partes baixas. Com a passagem de água doce para o Pacífico, se perderia a salinidade das zonas costeiras, afetando milhares de espécies marinhas e bancos de arrecifes e, com isso, a migração de espécies de tartarugas ameaçadas que a cada ano chegam para desovar nos refúgios de vida silvestre de Chacocente e La Flor, no departamento nicaraguense de Rivas.

A empresa responsável pela obra, a construtora brasileira Andrade Gutiérrez, admitiu para as autoridades da Nicarágua que haverá danos ambientais e propôs alternativas para o governo analisar. De acordo com o documento “Perfil Hidrelétrico Brito”, apresentado em junho ao governo pela companhia brasileira, as obras afetariam 33% das áreas de vegetação nativa da reserva biológica Indio Maíz. Tal reserva fica localizada na região sudeste da Nicarágua, na margem esquerda do rio, com uma extensão de 3.180 quilômetros quadrados.

Declarada Reserva da Biosfera do Rio San Juan, em 2003, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), a região compreende uma floresta tropical úmida, pântanos e lagos, com uma fauna bastante diversificada: onças, águias grandes, tucanos, araras, peixes-boi, tubarões martelo e crocodilos. É considerada a maior fonte de diversidade botânica do país e do istmo.

Além disso, de acordo com a Andrade Gutiérrez, o projeto hidrelétrico "causará alterações na qualidade da água e no transporte de resíduos, com consequências sobre os ecossistemas aquáticos e sobre a saúde da população do entorno”. Brenno Machado Nogueira, diretor comercial da Andrade Gutiérrez para a Nicarágua, disse ao Terramérica que a Construtora contratou uma empresa internacional para elaborar um estudo de impacto ambiental que permitirá corrigir, mitigar e superar os problemas.

No entanto, outras ameaças se erguem sobre a reserva. Antonio Ruiz, diretor executivo da Fundação do Rio, organização não governamental que fiscaliza a atividade sociocultural e ambiental de San Juan, denunciou em novembro que a monocultura de palma africana contamina os refúgios de vida silvestre e águas, e está acabando com a vegetação nativa.

Segundo um estudo da Fundação, a região está sujeita à expansão da pecuária, da extração de madeira e das plantações de palma africana (Elaeis guineensis) e de melina (Gmelina arborea) nas áreas de recuperação de vegetação e nas florestas tropicais úmidas. "Foram devastados quase 50 mil hectares de florestas folhosas, e a cada ano o desmatamento continua em um ritmo de quase 1,2 mil hectares", denunciou Antonio. A destruição dos ecossistemas florestais, desde 1983, representa a perda de 60% das florestas na área compreendida pela reserva, estimou.

Segundo o ecologista Kamilo Lara, o desmatamento do lado da Costa Rica e o uso de agrotóxicos que chegam às águas afluentes colocam em risco a maior bacia da região. Estudos feitos desde 2005 demonstram uma séria contaminação do San Juan por matéria fecal, sedimentos e agroquímicos de empresas processadoras de frutas e fazendas de gado no lado costarriquenho, disse Kamilo ao Terramérica.

Costa Rica e Nicarágua estão envolvidas em um conflito que, em novembro, San José levou ao Tribunal Internacional de Justiça, com sede em Haia, denunciando Manágua por suposta invasão territorial e destruição ambiental. O governo de Daniel Ortega ordenou em outubro a dragagem em uma parte do Rio que desemboca no Caribe. Segundo a denúncia costarriquenha, o exército da Nicarágua instalou-se em uma região reclamada pela Costa Rica e na qual são realizados supostos atos de destruição ambiental.

O tribunal examinará o caso de forma preliminar em 11 de janeiro de 2011. A Costa Rica pede medidas cautelares para deter a dragagem e evitar danos ao meio ambiente de Isla Calero, de 151 quilômetros quadrados, localizada à margem direita do Rio, em área de grande riqueza ecológica. Manágua rechaça as acusações e afirma que a dragagem é um dano temporário e “mínimo”, comparado com o beneficio de reabilitar a rota natural de espécies do Caribe até o Grande Lago através do San Juan.

Outros planos que envolvem o Rio estão suspensos. A planejada exploração mineira a céu aberto no Morro Crucitas, no Norte da Costa Rica, foi suspensa pelas autoridades judiciais do país. Enquanto isso, o histórico plano de completar um canal interoceânico nicaragüense, incluindo parte do curso do San Juan, está congelado por falta de recursos para realização dos estudos.

Por José Adán Silva - correspondente da IPS.

Crédito da imagem: Cortesia El Nuevo Diario

Legenda: Vista do Rio San Juan.






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