Brasil, berço das águas?

Data: 30/06/2010

Brasil, berço das águas?



Por Paulo Lima, Especial para Plurale em revista
Esta matéria é destaque da Edição 17 de Plurale em revista, que está circulando

A água é o nosso recurso natural mais precioso e abundante. Este é um clichê comum não apenas aos círculos ecológicos, mas às pessoas em geral. Basta olhar ao redor. Afinal, vivemos no planeta água. E, no caso do Brasil, o clichê se reveste de uma convicção ufanista. Temos água para dar e vender. Se esse líquido essencial à vida está se tornando escasso no planeta, podemos dormir sossegados, pois temos bastante. Se a água pode vir a ser motivo de guerra entre os países, como ocorre hoje com o petróleo, isso não nos apetece. Temos a Amazônia.


Cenários de água sendo disputada com avidez pertencem a realidades áridas e distantes, como a África. Pelo menos, é assim que nos acostumamos a pensar. Baseados nessa convicção, vamos cometendo nossos desperdícios cotidianos, certos de que a água nossa de cada dia está assegurada.


Mas a guerra pela água já é uma realidade. E nossas reservas não são tão perenes assim. Nem de boa qualidade. Quem afirma é o professor Marcos Callisto, carioca de 42 anos, mestre em Ecologia e doutor em Ciências Biológicas pela UFRJ. Atualmente, ele é professor associado no Departamento de Biologia Geral da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, onde coordena o laboratório de Ecologia de Bentos. Participa ainda como pesquisador associado do Projeto Manuelzão, da Universidade Federal de Minas Gerais, que visa recuperar as bacias do Rio das Velhas e do Rio São Francisco.


Callisto conversou com a Plurale numa manhã ensolarada de sábado, num restaurante aprazível da Praia de Aruana, em Aracaju. Ali, ao sabor de uma brisa cálida e de frente para a imensidão do Atlântico, expôs seu ponto de vista sobre a questão da água, a qualidade dos mananciais existentes no Brasil e um embate já em curso entre os países pela disputa das reservas no planeta.


Callisto acha que existem alguns pontos a considerar. O primeiro é a ideia de que a guerra pela água é um risco situado no futuro, não no presente. Mas o problema está bem aí. “A gente já vive numa situação de escassez”, adverte. Mas essa escassez não diz respeito à quantidade de água existente, e sim à qualidade do volume existente. “As pessoas têm a ideia errada de que a água é um bem abundante na natureza, e não é”. Considere a qualidade dos nossos mananciais, em qualquer região do Brasil. “Quantas pessoas têm a chance de chegar numa nascente, pegar água e beber direto sem medo de pegar uma doença, sem medo de morrer por estar contaminado?”, questiona. A tão propalada guerra pela água já é um fato.

“Não é uma coisa assim de prever. Não, já é isso. Você tem países no Oriente Médio que já passam por isso. Na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil.”
Este, aliás, é um alerta que ecoa em estudos recentes. No livro Água (Ed. Ediouro), Marq de Villiers, um jornalista que conheceu a dura realidade de diversos países, chama a atenção para o risco: “O Egito por mais de uma vez esteve na iminência de entrar em guerra por causa de desvios do Nilo. A água está em crise na China, no sudeste da Ásia, no sudoeste da América, no norte da África. Mesmo na Europa há escassez de água - seca já não é uma palavra estranha à Inglaterra, onde os lençóis freáticos declinavam no início da década de 1990”.


Outro elemento analisado por Callisto é a necessidade. A água traz em si um valor intrínseco. É um líquido vital para a manutenção de todos os seres vivos. Ele faz uma comparação entre a água e o petróleo, um bem cuja importância na economia do planeta é evidente. O exemplo é uma garrafinha de água de 500ml. “Quanto você está pagando?”, indaga. “O dobro do que você paga por um litro de gasolina, sendo que, na gasolina, você tem que explorar o petróleo off shore ou mesmo no continente”.


É óbvio que o processo de produção da gasolina é mais caro e elaborado. Mas podemos, em determinadas situações, dispensar seu uso. Deixar o carro na garagem e andar de bicicleta é apenas um exemplo. Porém isso não ocorre com a água. “Você não precisa de petróleo, mas as pessoas precisam de água. Individualmente, cada um de nós precisa de água.”


Este é mais um ponto a exacerbar tensões. Vamos imaginar a atividade econômica como um todo. A água está lá, em cada ciclo produtivo. “Todas as empresas, todos os tipos de atividade, sejam elas industriais, o que for, sempre precisam de água. Você não pode ter uma refinaria sem água, uma mineração sem água, uma siderurgia sem água, um montador de carro sem água, o restaurante sem água. Tudo isso precisa de água.”


Outro ângulo da questão, conforme Callisto, aponta para a manutenção da vida silvestre. Não somos apenas nós, os humanos, que dependemos da água para sobreviver. Os animais também precisam dela. Nós, moradores das cidades, podemos nos dar ao luxo de dispor de água bem tratada. Mas não os animais. “Quando eu chego em casa e abro a torneira, posso pegar e beber direto, não vou pegar uma doença. A água que nós temos é de ótima qualidade, é disponível pra gente.” Mas esse é um luxo que não está disponível para os animais, microorganismos e e plantas que vivem em ambientes aquáticos. “Eles merecem essa mesma água da boa qualidade, independentemente do homem.”


No caso do Brasil, Callisto explica que as nascentes das bacias hidrográficas exercem um papel importante para a qualidade de nossas reservas hídricas. Neste sentido, segundo ele, Minas Gerais é um estado privilegiado e uma exceção. “O mineiro, principalmente o que mora em Belo Horizonte, que é uma capital de 3 milhões de pessoas, não tem noção do que é falta d´água. Por quê? Porque a Copasa lá é uma ótima empresa, trata muito bem a água. O mineiro pega um carro e em meia hora está num lugar que tem nascente para beber água.” É o contrário do que ocorre em outros estados. “O Rio de Janeiro não é assim, São Paulo não é assim, Manaus não é assim. Manaus tem a mesma população de Belo Horizonte. Você anda em Manaus e a população não tem água de boa qualidade para consumir.”


O que está em jogo é exatamente a proteção desses mananciais e as cabeceiras dos rios. E é daí que brota a água de qualidade de que necessitamos. Mesmo as iniciativas conservacionistas, motivadas pela proteção de espécies endêmicas, não levam em conta esses cuidados. “O Brasil tem uma reserva de água enorme. Mas quantos rios você conhece, quantos rios você visita ao longo do ano com água de ótima qualidade? O que a gente conhece são rios urbanos, retificados, canalizados, que recebem esgoto, que estão tampados, que deságuam aqui no litoral trazendo esgotos das casas, dos prédios e tal. Mas rios com ótima qualidade, isso a gente não tem”. Diante desse diagnóstico, ele conclui: “Não acho o Brasil um país privilegiado em termos de oferta de água de boa qualidade.”


Callisto relembra que quando chegou a Belo Horizonte podia se dar ao luxo de beber água direto da nascente do Rio São Francisco com um cantil. Hoje isso seria impossível. “Que realidade, em termos de qualidade de água, ou disponibilidade de água de boa qualidade, os nossos filhos e os nossos netos terão?”, ele se pergunta. “Será que eles vão ter a chance que eu tive?” O próprio Callisto responde: “Provavelmente, não”.




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