Dois séculos de depredação da natureza

Data: 19/05/2010

Dois séculos de depredação da natureza


Na década de 1830, a flora e a fauna existentes no território e nas águas da Argentina eram tão exuberantes e diversas que chegavam a intimidar o naturalista inglês Charles Darwin durante suas primeiras viagens à região. Quase dois séculos depois, quando se comemora o bicentenário do primeiro governo independente da Argentina, os recursos naturais parecem exaustos. Florestas, solos, espécies, águas, recursos pesqueiros, tudo está sob diferentes graus de ameaça.

“Até duas décadas atrás, alertávamos sobre espécies ameaçadas. Agora, o temor é que desapareçam ecorregiões inteiras”, disse à IPS o naturalista Claudio Bertonatti, da não governamental Fundação Vida Silvestre Argentina. “Se pudéssemos ter a imagem via satélite de 200 anos atrás ao lado de uma foto tirada agora, veríamos que a superfície florestal diminuiu em tamanho e qualidade. O que resta é menor e está empobrecido em variedades de espécies”, acrescentou. Para o especialista, a Argentina se desenvolveu sem planejamento e isso, do ponto de vista ambiental, tem um custo enorme. “Fizemos uma péssima administração dos recursos e não foi para nos desenvolver. De fato, temos cada vez mais pobres”, ressaltou.

Há dois séculos este país de 38,2 milhões de habitantes parece empenhado em exterminar suas florestas. Em 1810, Manuel Belgrano (1770-1820), prócer nacional e criador da bandeira, se manifestava alarmado com essa situação. “Vimos montanheses cortar uma árvore pelo pé apenas para testar o fio do machado. Causa a maior tristeza ver tantas árvores mortas. Já pressinto os detestáveis que seremos na próxima geração”, previa Belgrano. Em 1915, a Argentina tinha cem milhões de hectares de florestas, quase um terço do território. Embora existam dúvidas sobre a veracidade deste dado oficial, é claro que a massa florestal era abundante.

Em 1937 o censo agropecuário indicava área de 37,5 milhões de hectares e em 1987 essa superfície diminuiu para 35 milhões. Apenas dez anos depois, a camada diminuiu para 33 milhões de hectares. A perda se acelerou para dar lugar à agricultura intensiva. Atualmente, mais da metade da área plantada no país é ocupada pela soja, o cultivo de exportação comprado em grandes quantidades pela China para alimentar seus animais. A forma de produzi-la é eficiente, mas também prejudicial para o meio ambiente. A perda de floresta leva à redução da fauna. As manadas de mais de 500 guanacos que Darwin (1809-1882) avistava, o jaguar ameaçado e a diversidade de espécies ficaram para a história natural.

“A ordem dos roedores aqui é muito numerosa em espécies”, dizia o inglês em “Diário da Viagem de um Naturalista ao Redor do Mundo”, escrito entre 1831 e 1835. “Só de ratos cataloguei nada menos do que 80 espécies diferentes”, se surpreendia. Segundo Bertonatti, na Argentina há seis espécies já extintas, e existem 500 vertebrados e 250 plantas ameaçadas. A introdução de espécies de outros lugares não compensa a perda. Ao contrário, causa enorme dano às autóctones. O avanço da fronteira agropecuária para além da região fértil do pampa úmido, no centro-leste do país, não só arrasou com florestas, pastagens e fauna, como também causou grave deterioração do solo e uma acelerada desertificação.

Em 40 anos, o solo perdeu 11 milhões de toneladas de nitrogênio e 2,5 milhões de toneladas de fósforo, disse à IPS o engenheiro agrônomo Walter Pengue, do Grupo de Ecologia da Paisagem e Meio Ambiente da Universidade de Buenos Aires. Ambientalistas e organizações de pesca artesanal se converteram em guardiões da biodiversidade em rios e mares, mas esse trabalho de conscientização ainda não atinge o restante da sociedade. A merluza comum, principal espécie comercial do Atlântico Sul, está em crise pela sobrepesca. Nos últimos 20 anos, foram perdidas 80% de suas existências, apesar de a Argentina consumir menos de 5% do que captura.

Em água doce, um caso exemplar de depredação é o do caudaloso Rio Paraná, no nordeste do país. A falta de planos de manejo, as grandes represas hidrelétricas e a pesca industrial ameaçam espécies e as comunidades ribeirinhas. O panorama dos cursos de água é sombrio. Para citar um caso, a bacia Matanza-Riachuelo, ao sul de Buenos Aires, é o modelo de contaminação hídrica que começou já no primeiro centenário da independência argentina. O rio, de apenas 64 quilômetros, recebe esgoto, dejetos de milhares de indústrias e abriga em suas margens centenas de lixões a céu aberto.

Em um artigo sobre os desafios no ano do bicentenário, Maria Eugenia Di Paola, diretora-executiva da não governamental Fundação Ambiente e Recursos Naturais, enumerou os múltiplos desafios que surgem ao se fazer um balanço. Em conversa com a IPS, disse que, “lamentavelmente, em 200 anos o meio ambiente nunca fez parte das decisões estratégicas do país, por isso o grande desafio é que passe a fazer parte” das políticas.

Para María Eugenia, é necessário integrar as questões ambientais às decisões políticas mediante um Estado transparente, que dê informação confiável, e com uma sociedade disposta a se comprometer com a recuperação do tempo perdido. “O bicentenário é uma oportunidade para mudar o modelo” para um modelo de desenvolvimento sustentável, afirmou. Do contrário, continuará a depredação, sem volta”, concluiu. IPS/Envolverde


(IPS/Envolverde)




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