Ilustradores botânicos

Data: 04/05/2010

Ilustradores botânicos


As exuberantes fauna e flora brasileiras da época do descobrimento e do período colonial puderam ser preservadas até hoje pelos traços de grandes ilustradores, como Rugendas, Tunay e Debret. O que pode parecer trivial, tem um valor cultural e científico muito relevante: ilustradores botânicos têm papel essencial na descoberta de novas espécies e na preservação de outras em extinção. A partir do delicado e minucioso trabalho destes artistas, a natureza tem maiores chances de ser preservada.

Em homenagem ao centenário de nascimento de uma das maiores pesquisadoras da riqueza da flora brasileira, a inglesa Margaret Mee, em 2009, com vários eventos ainda ocorrendo, Plurale em revista homenageia a dedicação destes abnegados profissionais. Margaret Mee imortalizou em suas obras algumas espécies antes pouco conhecidas e mostrou ao mundo a riqueza da flora verde-e-amarela. Chegou ao país em 1952 e viajou por diversos biomas – principalmente pela Amazônia e Mata Atlântica - para registrar, com sua inconfundível arte, toda a diversidade de belas orquídeas, bromélias e outras espécies. Faleceu em 1988 deixando um legado até hoje estudado e visitado.

Deixou gravada sua paixão pelo planeta e pela preservação da natureza. “Eu sei que minha morte não será o fim do meu trabalho. Onde quer que eu for, tentarei influenciar aqueles que estão destruindo nosso planeta. Assim a Terra terá uma possibilidade de sobreviver”.

Profissionais dedicados- E como é o trabalho de ilustrador botânico no século 21, em plena era cibernética? Ouvimos três experientes e gabaritados profissionais com muitos anos de estrada: a mineira Belkiss Radicchi Alméri, a carioca Dulce Nascimento e o paulista Rogério Lupo. Apesar de histórias diferentes, em comum, o trio tem estudado bastante nesta especialização e traz a mesma disposição para se debruçar sobre um trabalho ainda pouco reconhecido no Brasil e, por isso mesmo, mal remunerado.

“Quando morei em Londres, por ter ganho uma bolsa de estudos em Kew Gardens, pude confirmar como os estrangeiros dão muito mais importância para esta nossa atividade”, conta Dulce Nascimento, integrante do Conselho da Fundação Botânica Margaret Mee e referência em sua área, com diversos trabalhos espalhados nas mãos de admiradores no Brasil e pelo mundo. Seus trabalhos estão expostos nos palácios de Buckingham (Inglaterra), Real de Madri (Espanha) e Palácio Real de Oslo (Noruega), tendo sido presenteados pelo governo brasileiro aos chefes de Estado desses países.

Professora de ilustração botânica, com 22 anos atuando nesta área, ela tem sido procurada por muitos estrangeiros residentes no Brasil interessados em ter aulas. “Talvez estimulados pela beleza e riqueza de nossa flora e pela cultura que trazem desde crianças em saber admirar esta arte em seus países. Apesar da sofisticação esta é uma atividade democrática e pode ser absorvida por qualquer um que tenha interesse”, assegura.

Em campo - Belkiss, 51 anos, já era artista plástica consagrada até começar na atividade há cerca de cinco anos pelas mãos da filha, Cândida, bióloga formada pela Universidade Federal de Minas Gerais. “A dedicação é fundamental porque nos é exigido rigor técnico para a representação de detalhes, visando a clareza de informações para que as imagens comuniquem o que está escrito”, explica Belkiss. Algumas vezes ela precisa ir a campo para “mergulhar” de corpo e alma na natureza. Foi assim recentemente, quando esteve na região dos arredores de Araxá (MG).

Dulce também viaja muito, como para ilustrar a Mata Atlântica ou a Amazônia. Há 12 anos realiza uma viagem com seus alunos para a Amazônia por uma semana – pelo Rio Negro e Anavilhanas – ensiando técnicas, o improviso do trabalho em campo e o convívio com a dinâmica da floresta e seu povo.

Já ilustrou várias novas espécies, como as sete que a Vale cadastrou há dois anos e batizou em homenagem a “imortais”, com ações relevantes pela preservação do meio ambiente: foram eleitos pelo voto popular um para cada região do país, como o fundador de O Boticário, Miguel Krisgner, pela Região Sul, a poetisa Zeneide Lima, que faz trabalhos socioambientais na Ilha de Marajó e um prêmio especial para D. Ruth Cardoso, ex-primeira-dama e uma ativista social com o Alfabetização Solidária. Dulce passou semanas imersa na Reserva Natural Vale, em Linhares, no Norte do Espírito Santo para cadastrar algumas destas raridades.

“Retratamos espécies dos mais variados ecossistemas. O trabalho de campo, nas expedições, acompanhamos o desenvolvimento das espécies para retratá-las e também o habitat em que se encontram.
A ilustração científica, tem esse objetivo de estudo”, explica.

Profissão exigente - Rogério Lupo, 39 anos, é o mais jovem da turma, mas com grande bagagem na área. Começou na atividade quase por acaso. Biólogo, formado pela USP em 1997, especializou-se em Pesquisa Botânica. Em paralelo à faculdade, estudou desenho e arte com o professor espanhol Angel Martinez, na época dono da já extinta Escola Clássica de Arte, no Sumarezinho. Trabalhavam com modelos refinados de réplicas de esculturas clássicas, aprendendo a desenhar observando, lembra-se Rogério.

“Assim que me formei, comecei a ilustrar os trabalhos de colegas do mesmo laboratório de pesquisa em que trabalhei, para os trabalhos de pós-graduação deles. Com o tempo, foram surgindo propostas de diversos outros tipos”, conta Rogério.

Segundo ele, a profissão é muito exigente, mas para quem está disposto a se dedicar a detalhes e se aprimorar, é apaixonante. “Trabalha-se muito com materiais secos e prensados, as plantas que são tratadas para ficarem armazenadas museologicamente em herbários, dentro das instituições de pesquisa. Mas muitas vezes se tem a oportunidade de lidar com plantas vivas e ir a campo ilustrar”, explica. Rogério é outro que adora por os pés na estrada. Seja onde for.

Rigor científico - Se por um lado há o lado lúdico das Artes Plásticas, nesta profissão, o ilustrador não pode, jamais, perder de vista o rigor científico. “A profissão de ilustrador botânico é em primeira instância, um compromisso com a ciência. Isto porque o objetivo primordial dos desenhos em uma prancha botânica é registrar a espécie em toda a sua complexidade de forma que a mesma possa ser reconhecida tanto hoje como daqui a cem anos”, reforça Dulce.

As técnicas mais utilizadas são aquarela, nanquim e grafite. Muitos ilustradores também executam os trabalhos em scratchboard, guache, acrílico e computação gráfica. Todo o trabalho tem a supervisão do pesquisador/biólogo. “Estamos a serviço da Ciência. Não é uma obra de arte livre. Temos que seguir um rigor científico para representar os detalhes das espécies, visando a clareza das informações, para que as imagens se comuniquem com o que está escrito”, destaca Belkiss.

Dentro da ilustração botânica há vários sub-ramos, como explica Rogério. Pode-se ilustrar para os pesquisadores: neste caso, na maioria das vezes trabalhará em preto e branco, nanquim ou lápis, e os desenhos serão destinados a publicações científicas. Mas também há possibilidade de se trabalhar em cores, e aí muitos outros campos se abrem.
O valor da ilustração científica é imenso. Além de estar atrelada aos trabalhos acadêmicos e didáticos, através destas imagens é possível tornar conhecidas espécies que estão ameaçadas de extinção e até mesmo reconstituir como eram espécies extintas através da reconstituição utilizando acervo de herbários e museus. Desta forma, os ilustradores fazem um valoroso trabalho de conscientização, educação e informação. Aproximando as pessoas de causas ambientais, incentivando posturas conservacionistas e ações que visam a sustentabilidade.

Rogério conta que o que norteia sua aspiração profissional nessa questão de preservação, é o fato de que as pessoas parecem ficar mais encantadas com a beleza da natureza quando essa beleza aparece em obras de arte. “Depois de serem tocadas por isso, elas passam a olhar a natureza de um modo diferente, e muitas se apaixonam por plantas depois de ver ilustrações, porque nunca haviam olhado direito para uma planta, a não ser depois que a viram ilustrada”, lembra. Isso mostra, segundo ele, que as pessoas não olham direito para a natureza até que vejam que alguém olhou e viu ali coisas fantásticas. “Parece que, só então, perceberam que há algo valioso que estão perdendo.”

Tecnologia - Mas como, utilizando técnicas milenares, a profissão ainda não foi influenciada por técnicas mais avançadas, como a fotografia digital, por exemplo? Dulce explica que a tecnologia tem ajudado sim, mas nada que substitua o traço e a precisão dos ilustradores. No caso da foto digital, é possível ajudar a conferir forma, textura e volume. A binocular (uma espécie de microscópio) e câmera clara são também instrumentos que podem ser utilizamos para documentar com precisão partes do interior da planta invisíveis a olho nu e tão importantes quanto o seu exterior, para uma identificação correta. Dito isso, volta-se à mágica e lirismo da atividade: felizmente, nem toda a tecnologia é capaz de substituir o papel do ilustrador.

Existe mercado de trabalho para o ilustrador botânico no Brasil, mas não tão forte quanto em outros países. Institutos de pesquisas, principalmente de Jardins Botânicos, empresas com foco na natureza e pesquisadores costumam ser alguns dos principais clientes. A iniciativa privada, recentemente, tem sido incentivadora por estar mais engajada e ciente das ações e comprometimento com a sustentabilidade, e, por conta disso, gera trabalhos de pesquisa e conservação.


Os ilustradores explicam que a diferença entre o setor privado e as universidades públicas está na remuneração. A verba destinada à pesquisa e educação no país está longe de ser ideal. Infelizmente, a profissão ainda sequer é regulamentada no país. Rogério conta que alguns chegam a precisar viver “de bicos” e que sem o reconhecimento devido, a profissão de ilustrador botânico – chegando ao ilustrador científico – se transforma em uma verdadeira lenda.

Blog - Como são poucos os eventos e exposições, foi criado um blog (http://exponic.blogspot.com/) para divulgar mais a atividade e o próximo encontro, ainda este ano, em Brasília. “Neste ano será aberto o edital para os que pretenderem se inscrever para a próxima exposição e isso será divulgado neste blog”, explica Rogério.
Dulce é outra militante ativa na difusão da atividade para os jovens. Além de seus alunos no Rio de Janeiro, também participou, em 2009, de programa “Jovens Ilustradores” para descobrir novos talentos em uma ação patrocinada pela Vale. Cerca de 2 mil adolescentes foram atingidos pela ação, que levou educação socioambiental e cultural através do ensino da ilustração botânica usando espécies nativas das regiões. Ela conta que viajou pelos estados de Sergipe, Pará, Maranhão, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. “Ao final, me encontrei com os melhores de cada estado, na Reserva de Linhares e foram ilustrados sete selos de espécies da Mata Atlântica. Tive o enorme prazer de descobrir talentos em meio a realidades tão duras. Gostaria que esses jovens artistas pudessem dar continuidade e desenvolvessem plenamente suas potencialidades”, sonha Dulce.

Se as novas gerações conseguirem entender melhor a relevância desta atividade profissional, a biodiversidade brasileira agradecerá. Estes abnegados guardiões da natureza, com seus pinceis, lápis e material de trabalho, agradecem.

Plurale


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