A identidade na modernidade-líquida

Data: 06/04/2010

A identidade na modernidade-líquida


Eduardo Sabino

A identidade já foi conceituada pelos dicionaristas como o estado do que não muda, pelo contrário, permanece sempre igual. O conceito tem a ver com a representação e o pertencimento. O termo diz respeito ao arcabouço de signos com os quais é possível “identificar” os homens, distingui-los, reconhecê-los.
Vejamos a identidade nacional no Brasil. Há uma série de imagens ligadas ao brasileiro: o carnavalesco, amante do futebol, adepto à malandragem. Nem todos em território tupiniquim se reconhecem nisso. Uma das explicações vem do pensamento de Zygmunt Bauman: uma única pessoa, na modernidade-líquida, pode ter várias identidades. Ou ainda, a identidade hoje é líquida, mutante, filha de um emaranhado de modelos voláteis.
Só nos dicionários a identidade ainda é fixa. Para Bauman, essa mudança de percepção é produto da Era Moderna. As pessoas há muito não pertencem a lugares bem definidos. A mulher, brasileira, dona de casa, católica, fiel ao marido – embora resista em determinados espaços – é hoje – nos espaços globais – uma consumidora em constante mudança. De acordo com a lógica do consumo, podemos ser o que quisermos. Padrões culturais que aparentemente vêm para ficar logo serão trocados. Antes que se possa chegar a um estado de reconhecimento, de solidificação da identidade, a meta se transfigura. Entre tantas escolhas, a chamada crise de identidade – atribuída por psicólogos do século passado aos adolescentes – encontra-se no âmago do homem “pós-moderno”.
Na modernidade-líquida, a identidade deixa de ser algo dado pela sociedade para se tornar uma missão do indivíduo. Para se chegar ao objetivo capaz de clarear o seu “ser e estar no mundo”, o sujeito assume para si riscos, cargas e erros de uma sociedade inteira. O problema é que, nesses tempos, a sociedade é formada por indivíduos, e esses “agentes sociais” são levados, a todo instante, à autocriação.
É necessário controlar o peso, pintar o cabelo, malhar, praticar esportes, cuidar, enfim, do próprio corpo, mantendo-o em segurança. Também é sensato fazer ioga, ler livros de auto-ajuda e aceitar de braços abertos uma série de outras coisas que visam ao bem estar individual. Para salvar o meio ambiente, alvo principal da indústria acelerada, pede-se que o sujeito-indivíduo jogue a sucata no lixo. Para economizar a água desperdiçada nas hidrelétricas e poluída pelas fábricas, que “você”, o principal responsável, feche bem a torneira.
A determinação social foi alterada pela autodeterminação constante e obrigatória, fenômeno surgido no mundo moderno, mas que na sociedade líquido-moderna baumaniana alcançou um grau de intensidade sem precedentes.
Os signos verbais e não verbais que reforçam a identidade como objetivo ocultam um dos princípios básicos do mercado: os alvos a serem atingidos logo se transformarão. A corrida pela identidade tende a ser interrompida antes que algum indivíduo chegue ao final.
Não há “finalmentes” nessa Sociedade do Consumo. A insatisfação é o combustível para a eterna mudança. Tão logo o fim é prometido, é preciso que ele seja denegrido, deslocado. E assim a caótica “busca existencial” dos seres humanos acompanha a velocidade do mercado e permite o próprio movimento dele.
As identidades mutáveis refletem a escuridão do futuro. Sem apoio no passado, às voltas com a imprevisibilidade, os homens tornam-se ponteiros do relógio líquido-moderno. Movem-se no eterno presente, ao passo em que aumenta a insegurança. O futuro é sombrio, não há um X no mapa sobre o qual os indivíduos se perguntam como chegar. A pergunta agora é aonde chegar, onde estaria o X em meio a tantos caminhos que mudam, ao sabor das notícias, os próprios contornos?
Em meio às identidades individuais, como retomar Karl Marx e organizar as classes sociais para uma possível revolução? As classes oferecem elementos sólidos de identificação. Davam às pessoas as características que as fariam membros de agrupamentos específicos, organizados pela emancipação social. A “liberdade” líquido-moderna permite ao sujeito que ele não se “limite” a se ver como um trabalhador, seja da base ou do ápice do sistema. Por si mesmo, ele deve entrar numa busca em um ambiente mediado pelo mercado e repleto de informações. Seja na tevê, nos livros, na internet, os caminhos apresentados são muitos e os recursos requeridos, escassos. A corrida da vida para consumo requer capital, seja o capital propriamente dito da economia neoliberal ou o intelectual. Esse, obviamente, não escapa à condição de valor de troca.
Uma vez encontrada a identidade deve ser defendida de um inimigo onipotente, a liquidez dos tempos contemporâneos. Sob o codinome de Mercado, a vida humana – por meio da cultura do consumo e, imagine-se, por intermédio do processo de comunicação – exige a renovação de todas as coisas e fragmenta, assim, a identidade dos indivíduos. Conforme Bauman, ainda há defesa das identidades, não ferrenha como foi a defesa da identidade nacional em tempos de guerras mundiais (o patriotismo cedeu lugar ao multiculturalismo). Mas a luta por uma identidade concluída se dá contra a inevitável roda do novo.
O filósofo alemão Ludwig Wittgenstein fez, no início do século XX, a célebre observação de que as estações de metrô são lugares ideais para se resolver problemas filosóficos modernos. Já os líquido-modernos são pauta para aeroportos.
(*) Fragmento da monografia “A comunicação em tempos de consumo”, apresentada ao Centro Universitário Newton Paiva, em Belo Horizonte-MG, em 2009. O texto foi readequado para esta publicação.
Eduardo Sabino é escritor e redator. Acabou de lançar, pela editora Novo Século, o livro de contos "Ideias Noturnas sobre a Grandeza dos Dias". É editor e colaborador da revista eletrônica Caos e Letras (http://caoseletras.blogspot.com)

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