Mudança climática: uma agenda realista para a 2010

Data: 24/02/2010

Mudança climática: uma agenda realista para a 2010


Por Sérgio Abranches



Há, em muitos setores, o sentimento de que estamos em pleno retrocesso na política de mudança climática. A lei de energia alternativa no EUA parece mais longe hoje do que no final do ano passado. O IPCC, painel científico intergovernamental para mudança climática, parece encurralado. O movimento social globalizado parece estar quieto demais e na defensiva. O apoio ao Acordo de Copenhague foi morno até agora. Os compromissos que os países registraram no seu anexo são insuficientes para alcançar a meta de 2ºC. Eles apontam para um cenário de 3,5ºC, na melhor das hipóteses. Os negacionistas parecem estar levando a melhor.

Estamos mesmo perdendo terreno? Ou somos prisioneiros de uma visão de curto-prazo, um sentimento de conjuntura baseado apenas em aparências? O que estamos captando são tendências, ou apenas turbulências passageiras?

Não há retrocesso importante na política de mudança climática. O que estamos vendo é a reiteração de um processo de “paradas e arrancadas” que carateriza ambientes decisórios complexos. O ambiente político da mudança climática é quase tão complexo quanto o próprio sistema climático. Ele se defronta com o que eu chamei de Paradoxo de Asimov. Com tantos interesses, agentes de veto e decisores envolvidos, qualquer solução a um tempo política e cientificamente significativa só será adotada se atender a um dos dois requisitos do Paradoxo de Asimov. Para se conseguir grandes transformações, como o exige o enfrentamento da ameaça da mudança climática, é necessário promover uma transformação profunda na economia e na sociedade, no prazo de duas décadas, no máximo três. Para se ter esse tipo de mudança, ou se obtém apoio massivo, além da maioria absoluta em todos os países relevantes; ou se espera várias décadas a mais, talvez um século, para que essa mudança ocorra de forma gradual. Como não há tempo a perder, deve-se continuar lutando para obter o grau de consenso necessário para ativar a mudança política necessária. Ao mesmo tempo, é preciso investir em outras frentes de batalha, enquanto se continua a negociar uma política global para mudança climática. A redução efetiva das emissões de gases estufa deve começar o mais rapidamente possível. Daí a importância de investir politicamente, mobilizar a sociedade civil organizada e a vanguarda empresarial no plano local, no âmbito de cada país que é grande emissor de gases estufa.

Há em curso uma campanha muito bem financiada e orquestrada pelos que negam a mudança climática e pelos lobbies fósseis para desacreditar o IPCC e a ciência do clima. O IPCC cometeu alguns erros importantes e precisa lidar com eles de forma mais direta e efetiva. Ele certamente precisa mudar na estrutura e no processo. Se for possível levar o IPCC a um estágio mais avançado de desenvolvimento institucional, que permita gerar balanços da ciência do clima mais imunes a erros de procedimento, em intervalos menores de tempo, e com menos interferência política, ajudaria tremendamente a luta por um marco institucional legalmente vinculante para a política climática global. Finalmente, o IPCC também enfrenta uma crise de liderança. Uma nova presidência poderia trazer mais autoridade científica para seu comando institucional, novas idéias e obter melhor pelo equilíbrio entre ciência e política. Seu atual presidente dificilmente conseguirá se recuperar da perda de confiança e legitimidade pela qual está passando. Seria excelente que a substituição de Yvo de Boer, que pediu para sair, fosse acompanhada pela troca de guarda na presidência do IPCC.

A ciência do clima é sólida e as evidências de mudança climática não foram refutadas. Houve muita crítica e ataque ao IPCC, mas nenhum trabalho sério de cientistas demonstrou que o núcleo da tese sobre mudança climática está errado, ou apresentou hipótese mais aceitável pelas regras do método científico.

O movimento social está muito parado e na defensiva? Acredito que não. As maiores ONGs estão ocupadas avaliando o que aconteceu no ano passado e desenhando suas estratégias futuras para o curto e longo prazo. Elas provavelmente tiveram, em 2009, seu melhor resultado da história, em termos de mobilização, visibilidade e influência. Contudo, a COP15 foi, provavelmente, também a maior frustração que já viveram. Elas certamente estão descobrindo que têm que rever e redesenhar suas estratégias, diante das experiências de 2009. Elas precisarão de uma nova agenda para ação. E precisam fazer isso com a máxima urgência possível, para superar a frustração e começar a confrontar para valer a campanha dos negacionistas contra a ciência, as políticas e a política da mudança climática.

Não perdemos terreno de fato, mas o resultado da Cúpula de Copenhague teve um efeito depressivo sobre o movimento ambientalista focado na mudança climática, nos cientistas, analistas e na maioria dos negociadores governamentais. A frustração das expectativas de um acordo pleno, legalmente vinculante e ambicioso, e a constatação de que as lideranças das principais potências do mundo não haviam conseguido um entendimento em Copenhague, com certeza causou danos temporários ao movimento por um acordo climático global. Também motivou os negacionistas e lhes deu a oportunidade para lançar uma violenta ofensiva política e de opinião pública, especialmente no Reino Unido e no EUA.

Mas vamos olhar o lado bom dessa história.

Todos os grandes países emissores adotaram uma agenda para a mudança climática. No EUA, enquanto o Senado está atolado no exame da lei sobre energia limpa, a EPA, a agência ambiental federal, os estados e as cidades estão trabalhando ativamente para impor regulação mais restritiva às emissões de gases estufa. A lei de energia limpa não é a principal prioridade do presidente Obama ainda. Tampouco é a primeira prioridade da sociedade estadunidense. Portanto, ela provavelmente terá uma trajetória dura e acidentada até ser aprovada, ao invés de ter seu processo acelerado por acordo. A iniciativa local não perdeu momentum, nem o governo federal está paralisado pelo impasse no Senado.

A China está liderando o investimento global em energia verde e controle de poluição. Faz isso por seus próprios motivos. O governo chinês tem editado a um ritmo crescente novas regras, mais restritivas, para emissões de carbono. A Índia também começa a implementar ações de baixo carbono por sua própria conta. Nenhum grande emissor de carbono abandonou ou negou os compromissos levados a Copenhague. EUA e Brasil já disseram que cumprirão seus compromissos mesmo que não haja acordo internacional. Em outras palavras, o compromisso político de agir em relação à mudança climática se mantém e há sinais de avanços adicionais em vários desses países. Políticas legalmente vinculantes têm sido adotadas pelos governantes da maioria dos grandes emissores e de inúmeros outros países.

A maior ameaça a progressos no curto prazo no campo da mudança climática vem da nova onda de choque oriunda da crise financeira que não foi ainda superada. As economias europeias estão sendo atingidas por ela antes de estarem plenamente recuperadas do choque original do colapso das hipotecas no EUA. Esse novo ciclo de crise na Europa não se limita à Grécia. Espanha, Portugal, Itália e Irlanda também estão em sérios apuros. O que se vê é um desajuste financeiro e fiscal complexo e profundo, de alto poder explosivo. As maiores economias da União Europeia e a economia do EUA ainda estão muito frágeis para resistirem a um efeito de contágio, se essa rodada da crise escapar ao controle e se espalhar pelo mercado financeiro global.

Isso significa que se o crescimento não for retomado e os efeitos colaterais da crise não forem superados, a agenda climática dificilmente terá prioridade global significativa este ano. O cenário de superação rápida da crise e seus efeitos não parece provável da perspectiva de hoje. A mudança climática ficará na agenda das grandes potências desenvolvidas e emergente como um sério desafio no século 21, mas ações mais abrangentes podem ser adiadas por pelo menos mais um ou dois anos.

A visão mais desalentadora da política da mudança climática resulta, realmente, de uma visão de curto prazo. Mas ela não se baseia apenas em aparências. Há elementos na conjuntura que podem impedir progresso relevante no curto prazo. Nós não estamos andando para trás, mas estamos parados. Hoje, as condições para um tratado pleno e vinculante são parcas, se não adversas. Os países ainda estão ocupados com problemas mais prementes no curto prazo.

O cenário de mais turbulência econômica e adiamento das ações relacionadas com a mudança climática requer reflexão estratégica. Seria importante evitar que a COP16 seja outra grande frustração. O futuro da política global do clima depende de que se obtenha o melhor resultado possível em Cancún, dadas as circunstâncias do momento. São vários os riscos a serem administrados, para que a COP16 tenha sucesso. Três deles são visíveis e podem ser administrados.

Olhando-se primeiro para as expectativas, há dois riscos opostos a evitar. O primeiro é uma inflação de expectativas sobre um acordo legal, semelhante à que se viu na COP15. No momento, é um risco de baixa prioridade, mas que deve ser evitado a qualquer custo. O seu oposto, mais provável nesse clima de frustração, é uma deflação de expectativas que poderia condenar a COP16 ao fracasso, antes mesmo que comece. O terceiro risco se refere à formulação da agenda de demandas aos países e da agenda da própria COP. Dependendo de como se desenvolva o quadro de crise financeira e econômica, seria muito arriscado demandar mais do que os países podem realisticamente fazer e estabelecer metas muito ambiciosas para a COP16.

Um conjunto de metas realistas evitaria a frustração e ajudaria no sucesso da reunião. Realista não significa medíocre, mas pode significar resultados ainda aquém do que a ciência do clima pede. Se o cenário econômico global não melhorar consideravelmente ao longo do primeiro semestre, o objetivo de se obter um acordo legal pleno em Cancún deve ser explicitamente adiado antes do início da COP16. Seria melhor trabalhar para trazer o “espírito” original do Acordo de Copenhague para o marco do documento sobre as ações de longo prazo (AWGLCA) da Convenção do Clima (UNFCCC). O próprio documento sobre o Protocolo de Kyoto (AWGKP) poderia usar esse “espírito do Acordo” para buscar um ponto de consenso em torno do segundo período de compromissos. Conciliar os objetivos originais do acordo político de Copenhague e o processo legal da UNFCCC é factível, embora ainda requeira muita negociação e bastante complicada em alguns pontos. O objetivo poderia ser obter o melhor alinhamento possível das vias política e legal. Ter uma proposta completa de tratado aprovada e assinada parece, no momento, fora do alcance da COP16.

Outro objetivo importante seria aprofundar, ao longo de 2010, o comprometimento dos principais países desenvolvidos e emergentes com o Acordo político acertado em Copenhague. O fortalecimento do Acordo de Copenhague ao longo do ano, ajudaria muito a realização daquele objetivo de alinhar o máximo possível os canais político e legal da negociação sobre mudança climática. Essa poderia ser uma agenda apropriada para as reuniões do G20 e do Fórum das Maiores Economias (MEF). Claramente, o tema no topo dessas agendas será a crise financeira. Mas os líderes dessa liga de grandes países simplesmente não podem mais descartar em suas conversas a ameaça da mudança climática e as questões pendentes sobre o Acordo de Copenhague. Esses temas constarão muito provavelmente de suas agendas. O desafio é pressionar para que sejam orientados no sentido de fortalecer o Acordo e criar condições para sua absorção pelo conduto legal, até a COP16.

A melhor forma de lidar com o Acordo de Copenhague é levá-lo a sério. Ele pode ser revitalizado, ganhando densidade política. As metas podem ser melhoradas ou revistas, em três a cinco anos. O comprometimento dos países pode ser mais bem explicitado. Isso certamente facilitaria muito a incorporação do entendimento político à negociação formal- legal no contexto das Nações Unidas. Os países do BASIC, por exemplo, se mostraram ambíguos em relação ao Acordo. A China declarou apenas “estar em apoio” e recomendar o Acordo. Nem China, nem Índia disseram ainda que se associam a ele, o que corresponderia a assiná-lo e aceitá-lo como politicamente vinculante. O apoio do EUA também pode ser mais afirmativo e refletir o papel de liderança que Obama prometeu e ainda não cumpriu.

Buscar o progresso possível na preparação de um acordo legalmente vinculante – um novo Protocolo ou Tratado do Clima – e o fortalecimento do Acordo de Copenhague, para torná-lo um contrato político efetivo, tirando-o da incubadora, seriam metas relevantes e realistas para 2010 e para a COP16.



(Envolverde/Ecopolítica)


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