Sustentabilidade: Caminho sem volta

Data: 11/02/2010

Sustentabilidade: Caminho sem volta


Denise Ribeiro





Ao final de alguns anos em crise, com acusações que poderiam perpetuar a imagem de desgoverno, a diretoria do mais popular time de futebol paulistano, o Corinthians, decidiu expurgar os pecados do passado e projetar uma nova imagem para o futuro. A saída escolhida: fazer um relatório de sustentabilidade. “Queremos nos tornar exemplo de administração profissional e ética, o único caminho para o futebol brasileiro avançar num mercado cada vez mais exigente e competitivo”, diz o presidente corintiano Andrés Sanches, na carta de abertura do relatório, que reporta todas as ações do clube relativas a 2008 e informa, por exemplo, que seu elenco vale R$ 195 milhões.

Feito pela Report, prestigiada empresa de comunicação na produção de conteúdos de sustentabilidade, o relatório está no site do Corinthians, disponível para quem tiver a curiosidade de conferir o novo estilo de gestão do time. Do perfil dos 34 milhões de torcedores ao desempenho econômico, passando por ações de marketing, está tudo lá, estampado, esmiuçado e auditado – assim como as demonstrações financeiras, divulgadas em detalhes.

A tiragem de 25 mil exemplares em português, inglês e espanhol demonstra que o Corinthians encontrou no relatório um aliado fundamental no caminho de volta do seu inferno astral. Depois de amargar uma temporada na segunda divisão e se ver envolvido em acusações de lavagem de dinheiro, mostrar a cara através de um relatório de sustentabilidade é uma saída original. Especialmente quando o objetivo é divulgar a nova postura do clube, que resolveu sanear as finanças, acabar com a administração amadora e investir numa gestão que se pretende ética. Apostar na transparência ampla, total e trilíngue foi o caminho escolhido para reconquistar confiança e recursos no Brasil e no exterior.

Ao decidir trazer a público informações estratégicas, o Corinthians marcou um golaço na arena financeira e socioambiental. Ainda que tenha optado pelo modelo C, o mais simples no âmbito da Global Reporting Initiative (GRI), o clube deu um passo em direção à modernidade empresarial. Um passo que muitas empresas de grande porte ainda não estão prontas a dar, pois requer um mergulho profundo na companhia, seguido de reflexão sobre os tropeços da gestão, o que incomoda os poucos afeitos à autocrítica.

O bom e o nem tanto
O exemplo do Corinthians e de tantas outras empresas mostra que o tempo de usar balanços sociais como peças de marketing ou de relações públicas está ficando para trás. Fotos de crianças sorridentes, ilustrando projetos filantrópicos, não convencem mais a todos. Usar o relatório como instrumento de autolouvação também não.

Beat Gruninger, consultor da GRI e sócio-fundador da BSD, empresa de projetos na área de desenvolvimento sustentável, tem ajudado várias organizações a encarar o desafio de preparar relatórios. O consultor diz que inserir no relato as “coisas ruins” é, de fato, complicado para os gestores, mas totalmente compreensível – afinal, ninguém quer falar mal de si mesmo. “A transparência acontece aos poucos, é preciso perder o medo. É melhor publicar, ainda que dando ênfase ao lado positivo, do que deixar de relatar”, esclarece.

Aderir aos padrões GRI significa dar um salto de qualidade: entender que balanços socioambientais consistentes funcionam como ferramentas de gestão – e não de marketing. As diretrizes e os indicadores da GRI foram criados para ampliar o escopo dos relatórios de sustentabilidade que, graças a essa metodologia, vêm ganhando credibilidade no mundo todo.

Se ainda não têm o mesmo status dos relatórios financeiros, a cada ano consolidam um pouco mais sua relevância na percepção dos gestores. Atualmente, 1.100 empresas produzem seus relatórios com base na terceira geração do modelo GRI, a G3 – e 59 delas são brasileiras. As companhias que aderem voluntariamente à GRI entendem como essenciais ao seu negócio os valores intrínsecos a essa forma de relato: a transparência dos dados, a legitimidade das informações, a integridade dos fatos.

“A gente vai se aprofundando nessas questões não porque é bonzinho, mas porque a sociedade exige cada vez mais. É complicado, mas é bom. Democracia é assim”, afirma Nemércio Nogueira, diretor de assuntos institucionais para a América Latina e Caribe da Alcoa, habituado desde 2003 a fazer relatórios com base na GRI. “De lá para cá a sociedade passou a ter mais ferramentas para fiscalizar e se queixar. Viramos vitrine, está todo mundo olhando e dando palpite”, diz Nogueira.

Segundo ele, as organizações são pressionadas com cobranças vindas de todos os lados. “Não existe mais público-alvo no sentido tradicional; hoje lidamos com indivíduos, cada um na frente do seu computador. Os stakeholders têm demandas que vêm de direções opostas e cabe a nós administrar tudo isso”, diz. Para Nogueira, a GRI funciona como uma bússola, ajudando a empresa a evoluir junto com seus índices, que “puxam” para uma gestão mais comprometida à medida que se aprimoram. “Nós também usamos indicadores próprios. É um processo, a cada ano acrescentamos uma coisa, mudamos outra. Mas ninguém tem um mapa definitivo, um manual de instruções, está todo mundo tateando, discutindo: vamos fazer? com que amplitude? com qual profundidade? Sabemos apenas que é preciso avançar, porque essa marcha é inexorável”, diz o diretor da Alcoa, empresa com 120 anos de existência e 50 de Brasil.

Materialidade
Decidir até que ponto é possível bancar a transparência gera conflitos. O xis da questão para a alta cúpula da empresa é decidir que fatos vai priorizar, quais vai omitir e quais públicos serão envolvidos nesse processo. No Corinthians, quem bancou as decisões foram a presidência e a diretoria de finanças, com o suporte das demais diretorias e o apoio de uma consultoria especializada em comunicação e sustentabilidade.

Na Alcoa, o processo envolve cerca de 70 pessoas todos os anos, incluindo o presidente. Independentemente do número de participantes, a adesão da alta diretoria é fundamental para atender a um dos pré-requisitos mais importantes (e polêmicos) da GRI: a materialidade – ou seja, a capacidade da organização em provar a veracidade dos fatos expostos no relatório.

A materialidade se constrói com documentos, demonstração de balanços, depoimentos dos beneficiários de ações socioambientais, relatos de stakeholders, queixas e elogios de consumidores. No entanto, manter um canal de diálogo com seus públicos requer disponibilidade para ouvir. “A empresa que não está preocupada em ouvir e aceitar críticas não vai ser capaz de entregar as mudanças que o stakeholder quer”, afirma Jean Philippe Leroy, diretor do departamento de relações com o mercado do Bradesco e vice-presidente do conselho de administração do Instituto Nacional de Investidores (INI). Leroy coordena o esforço de uma equipe de 40 pessoas que leva quase um ano produzindo um dos relatórios mais elogiados do setor. “Claro que, num painel sobre o papel do setor bancário, teremos de responder por que os juros são tão altos e por que não damos mais apoio às microfinanças”, diz.

A materialidade é um dos elementos que qualificam o relatório também pelos parâmetros do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE). Lançado em 2005, reúne empresas listadas na Bovespa que ostentam alto grau de sustentabilidade, baseada na eficiência econômica, no equilíbrio ambiental, na justiça social e na governança corporativa.

“O princípio da materialidade é importante porque pressupõe diálogo, ouvir as partes interessadas – que nem sempre têm interesses convergentes – e incluí-las no processo do relato”, explica Roberta Simonetti, coordenadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade (CES) da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP), responsável pela metodologia do ISE e análise das empresas interessadas em fazer parte dessa carteira teórica da Bovespa. Roberta esclarece que, mais do que ser incluído no relato, o processo de escuta dos stakeholders deve contribuir “com a transformação da empresa, da sociedade e do mundo”.

Interface
É na hora de interagir com os stakeholders que a maioria das empresas se retrai, prejudicando a materialidade – e, portanto, a consistência – do seu relatório. Estar disponível para as demandas dos vários públicos com os quais se relaciona é tarefa árdua. “A organização tem de estar consciente do que pode representar esse diálogo. Não dá pra brincar, fingir que ouve, ou esperar que o stakeholder referende as práticas da empresa, fale só o que ela quer ouvir”, avisa Heloisa Covolan, coordenadora de responsabilidade sociambiental da Itaipu Binacional, cujos relatórios estão entre os melhores entre os publicados pelas empresas da holding Eletrobras.

Na opinião dela, abrir espaço para os stakeholders se expressarem só faz sentido se a empresa tiver maturidade para isso. A própria Itaipu, apesar do trabalho reconhecido no âmbito socioambiental, admite que precisa avançar nesse quesito – a companhia nunca fez um painel com stakeholders.

“Ouvimos o público interno, temos um trabalho rico com as comunidades, inclusive as indígenas do lado paraguaio, ouvimos alguns parceiros em projetos sociais e ambientais (como ONGs e prefeituras), mas ainda não temos um método estruturado para incluir todos os stakeholders”, diz Heloisa, que coordena a comissão pré-relatora, composta por 130 pessoas de diferentes escalões diretamente envolvidas no processo de análise, seleção e coleta das informações do relatório.

Embora complexa, a interface com os stakeholders vem ganhando força. “Esse engajamento deveria se dar de maneira muito mais estratégica, começar antes da montagem do conteúdo e não nos últimos cinco minutos do segundo tempo, como costuma acontecer”, argumenta o consultor Beat Gruninjer. Antecipar o processo tem sido enriquecedor para muitas empresas, que sofreram modificações significativas por conta disso. Ele cita como exemplo a Petrobras, que tem tradição em balanços socioambientais, e o Instituto Ethos, primeira organização não governamental do País a fazer um relatório com base na GRI. Mesmo debutando no assunto, o Ethos se destacou tanto pela transparência com que trouxe à tona os fatos negativos da gestão, como pelo empenho dedicado ao engajamento com os stakeholders. Só a apuração de informações envolveu 78 entrevistas – 49 com o público externo.

Evolução das práticas
Para muitas empresas, incluir a visão dos stakeholders no relato e, o que é mais importante, na gestão, é um excelente aprendizado. “Este ano queremos envolver mais stakeholders na elaboração, dar um passo além dos cases e depoimentos do que no ano passado. A cada ano evoluímos um pouco mais nos processos de materialidade e engajamento e também de aderência aos indicadores GRI”, afirma Nelson Letaif, diretor de comunicação empresarial da Braskem.

Segundo Letaif, a dificuldade em relação ao enfoque é difícil de ser contornada, porque resulta num calhamaço de informações que não interessam a todas as partes envolvidas. “Queremos recortes mais aprofundados, para públicos específicos”, afirma.

No Grupo Santander, que neste ano volta a seguir os padrões GRI, o objetivo é ampliar o número de indicadores usados de 40 para 100, o que significa envolver 30 áreas do banco no processo. “Também faremos um esforço maior de divulgação. A ideia é que o relatório não acabe, não morra no lançamento, permaneça vivo por um ano, motivando e inspirando as pessoas”, antecipa Juliana Mayrink, coordenadora de relações institucionais do grupo. Segundo ela, um sistema de extranet permitirá a quem está de fora acessar o relatório e contribuir com “palpites”.

Heloisa Covolan, da Itaipu, também tem planos de melhoria. “Queremos fazer cursos sobre GRI, módulos sobre materialidade, direitos humanos e outros temas. A área técnica ampliou sua participação: sete superintendentes querem fazer cursos”, informa.

Apesar de ter muito o que trilhar em direção à transparência e à incorporação dos princípios da sustentabilidade na gestão – incluindo toda a cadeia de valor –, as empresas sabem que não há mais espaço para adiamentos e indecisões. Até porque os relatórios padrão GRI-G3 são documentos preciosos de análise de risco, referência primordial para investidores. “É uma peça de apoio para investidores compreenderem como a empresa está evoluindo em direção a uma economia mais sustentável”, afirma Estevam Pereira, da Report.

Luciana Ferreira, diretora de relação com os investidores da Braskem e membro do conselho de administração do Instituto Brasileiro de Relações com Investidores (Ibri), concorda. “O relatório é um importante suporte de comprovação de informações. Meio ambiente, segurança, saúde e governança fazem parte das preocupações dos grandes fundos de investimentos estrangeiros. Eles têm uma visão de longo prazo e ficam positivamente surpresos com a maneira como tratamos o tema da sustentabilidade”, explica.

O relatório da Itaipu também reflete a boa saúde do sistema Eletrobrás, que em 2009 lançou ações na Bolsa de Nova York. “O investidor está atento aos impactos e compromissos da maior geradora de energia do mundo. Um relatório GRI-G3, auditado e com adesão ao Pacto Global funciona como vitrine, tangibiliza o nosso desempenho global”, argumenta Heloisa.

No Grupo Santander, que em outubro abriu seu capital, o próximo relatório é visto como “super-estratégico”, do ponto do vista da transparência e da credibilidade. “Essa injeção de capital é um processo bem complexo, que muda a visão da empresa. Seremos cobrados em vários níveis e temos uma grande expectativa de fazer um relatório que promova alguma forma de interação. Acionistas somos todos nós, não é só investidor que quer saber o nível de sustentabilidade da empresa”, afirma Juliana Mayrink.

Sem dúvida, o processo de elaboração de relatórios provoca transformações significativas, quando consegue mobilizar todos os níveis hierárquicos da companhia. Do diretor do Bradesco, Leroy, para quem cerca de R$ 1 milhão gasto na elaboração do relatório deve ser encarado como “investimento”, ao pessoal do almoxarifado da Itaipu, que implementou por conta própria melhorias nos processos de gestão de resíduos. Quem entendeu que a preparação do relatório contamina todos os envolvidos com os bons propósitos da sustentabilidade já pode se considerar um gestor de visão.

FOCO NAS DIFERENÇAS

Administrador pós-graduado em mercado de capitais, Roberto Gonzalez, diretor do Media Group, fala sobre o cenário em que estão inseridos os relatórios de sustentabilidade e aponta as tendências para os próximos anos. O Media Group é a maior empresa de produção de relatórios anuais (o tradicional, focado nos resultados econômico-financeiros) do Brasil.

Envolverde – O relatório é ou não uma ferramenta de análise de risco para o investidor?
Roberto Gonzalez – Depende de duas coisas: da data em que é publicado e do tipo de investidor a que se destina. Quando sai entre fevereiro e maio, ele consegue oferecer certo ineditismo do ponto de vista de informações estratégicas. Depois disso seu conteúdo envelhece e perde qualidade. Tanto que a Associação Brasileira das Companhias Abertas, (Abrasca) dá dois pontos às empresas que inscrevem seus relatórios no site até maio e só um para as que deixam para junho. Um relatório antigo serve mais para o investidor sustentável, que está à procura de indicadores que reflitam o posicionamento socioambiental da empresa. Já o investidor tradicional tem outros meios de se atualizar mais dinâmicos, como a análise contábil, o site da empresa, conference calls, reunião pública com analistas. Enfim, tudo o que precisava saber em matéria de estratégias de inovação e produção ele acaba sabendo antes da publicação de um relatório fora do prazo.

EV – Mas de qualquer forma publicar um relatório continua sendo importante para qualquer empresa?
RG – Sim, claro. Relatar demonstra preocupação em prestar contas, desejo de informar, de ser transparente. Essa atitude atrai confiança, principalmente se o relatório passar pelo crivo de um auditor independente. É importante para a empresa revelar seus valores para fornecedores, clientes, agentes governamentais, ONGs, parlamentares. Imagine que você seja fornecedor e queira ter como cliente a Natura, o Banco Real ou a CPFL – três empresas que são referência em sustentabilidade. Na hora da visita você leva o relatório e mostra que tem valores próximos aos dela, facilita o relacionamento. Vai pedir um empréstimo no banco, a mesma coisa: leva o relatório e o contato se dá de maneira mais fácil, o relatório é sua apresentação.

EV – Qual é a tendência evolutiva no conteúdo e na forma do relatório?
RG – Ele já evoluiu bastante na forma, há muita preocupação em trazer uma linguagem coloquial, mesmo as pessoas acostumadas a um português mais formal entendem que é importante o relatório atender a todos. Tanto que algumas empresas têm feito eventos específicos para explicar o relatório para o público interno – pesquisas comprovam que esse tipo de encontro aumenta o índice de produtividade, porque o funcionário sente que a empresa está preocupada com ele. Outra tendência é customizar o relatório, produzindo versões diferentes com linguagem e informações que atendam aos interesses de diferentes públicos: comunidade, clientes, fornecedores, funcionários. Com a popularização da internet, deve se expandir o uso de ferramentas de áudio e vídeo, para que os relatórios on-line sejam mais interativos, embora a versão impressa, ainda que resumida, continue.

EV – O que falta para os relatórios serem mais bem utilizados como fonte de informação?
RG – Falta investir em treinamento com vários públicos – do fornecedor ao morador da cidade –, para que entendam o lado econômico-financeiro do relatório. Um treinamento simples, que poderia ser viabilizado com a união de algumas empresas para dividir os custos, fazer convênios com os sindicatos de contabilidade. Se o objetivo do relatório é a transparência, não tem sentido justamente esse tipo de prestação de conta não ser compreendido. Contabilidade é uma ciência social humana, que tem tudo a ver com sustentabilidade, porque permite a análise de desempenho com maior profundidade, dá para entender por que se chegou àquela lucratividade, não pode ficar só no socioambiental. As notas explicativas trazem muitos dados sobre contingências ambientais, trabalhistas e políticas de risco. As pessoas precisam entender isso.(Envolverde)

Material produzido em parceria pela Envolverde e pela revista Razão Contábil de janeiro de 2010.



(Envolverde/Razão Contábil)




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