Biodiversidade: Entre o comércio e a superstição

Data: 08/02/2010

Biodiversidade: Entre o comércio e a superstição




Por Gustavo Capdevila, da IPS




As idas e vindas das modas, especialmente as gastronômicas e têxteis, e das crenças sobrenaturais são algumas das causas da ameaça de extinção de espécies de fauna e flora silvestres. A súbita voracidade, sobretudo no Japão e em setores de alto consumo do Ocidente, por dois pratos de origem japonesa, sushi e sashimi, dizimam as populações de atum vermelho do Atlântico, conhecido como o rei dos oceanos por seu tamanho, de até quatro metros de comprimento e 700 quilos. O ressurgimento de antigas superstições está levando os últimos exemplares de espécies quase mitológicas, como os tigres e os rinocerontes, porque algumas comunidades, em particular asiáticas, atribuem poderes medicinais a partes de seus corpos.

O comércio ilegal e o crime internacional organizado também fazem parte destes fenômenos de extinção de espécies, relacionados, por sua vez, estreitamente com a mudança climática e o equilíbrio ambiental do planeta. Com esses antecedentes, se reunirão em Doha, capital do Catar, os representantes dos 175 países que ratificaram a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora Silvestres (Cites). Em seus 35 anos de vigência, o pacto permitiu proteger algumas espécies que estavam à beira da extinção, e nesta nova reunião se procurará estender ou aperfeiçoar o amparo a cerca de 40 variedades.

Os animais em vida selvagem e as plantas silvestres têm um papel fundamental para a sociedade humana, disse David Morgan, chefe da unidade de apoio científico da Cites. A flora e a fauna “contribuem com benefícios importantes para o sustento de numerosas pessoas” e muitas ocupações dependem de seu aproveitamento, como “a madeira para construção de casas, alimento humano, remédios, cosméticos e até animais de estimação”, descreveu Morgan. A cada dois ou três anos, acontece a conferência da Cites para revisar as normas que regulam o comércio internacional de vida silvestre, e nesta oportunidade a sessão coincide com a celebração do Ano Internacional da Biodiversidade, destacou o especialista.

Uma das iniciativas que será discutida em Doha propõe fixar normas para condicionar o comércio de oito espécies de tubarões que são explorados para utilização de suas barbatanas. “A sopa de barbatana de tubarão constitui um manjar nas mesas de muitos países, em particular da Ásia”, disse Morgan. Palau, uma ilha no Oceano Pacífico, e Estados Unidos defendem a adoção de medidas de proteção para as espécies de tubarões cachona, martelo gigante, martelo, corre-costa, touro e o conhecido tubarão oceânico. Palau e Suécia, esta última em nome da União Europeia, defendem a inclusão nas listas da Cites do tubarão denominado anequim, muito procurado por suas barbatanas, mas também pela qualidade de sua carne.

Pelo mesmo motivo aumentou ao extremo a superexploração do tubarão espinhoso, muito apreciado na Europa pelos estabelecimentos de fast food, que servem os pratos de pescado frito e batata frita. Palau e Suécia também pedem a incorporação do tubarão espinhoso no Apêndice II da Cites, que controla o comércio das variedades sob sua proteção, mediante um sistema de autorização e estabelece um programa de gestão da pesca sustentável para cada espécie.

A superexploração dos recursos pesqueiros é discutida na Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), a partir de enfoques principalmente técnicos voltados aos equilíbrios alimentar e ambiental. Também se ocupa do tema a Organização Mundial do Comércio (OMC), embora privilegiando o aspectos das distorções causadas pelas subvenções que os países industrializados, em particular da União Europeia e o Japão, concedem às frotas dessas origens, acusadas de superexploração nos mares do mundo todo.

A FAO comprovou que, em 2006, a captura mundial, que exclui a aquicultura, aumentou para 92 milhões de toneladas de pescado. Desse total, 81,9 milhões de toneladas provinham do mar. O valor desse produto chegou a US$ 91,2 bilhões. A mesma fonte estima que 52% das existências de peixes marinhos ou de grupos de espécies estão sob uma exploração plena, enquanto 19% são superexplorados e 9% estão esgotadas ou se recuperando do esgotamento.

Quanto ao atum vermelho, que historicamente se desloca pelas águas do Atlântico, em particular as setentrionais, e por seus mares adjacentes, como o Mediterrâneo, as autoridades de Mônaco propuseram que em Doha se discuta a proibição completa de seu comércio internacional. A variedade do atum vermelho diminuiu drasticamente nos últimos 40 anos. Desapareceu das águas da Noruega e do Brasil por causa da pesca ilimitada, e chegou quase à inexistência no Golfo do México.

Nas águas do Atlântico oriental e no Mediterrâneo, a redução das existências de atum vermelho, entre 1957 e 2007, foi de 74,2%. Mas a maioria da perda, 60,9%, se concentrou nos últimos anos desse período. Em coincidência, nos primeiros anos do novo século, proliferaram na Europa os restaurantes de especialidades japonesas, como shushi e sashimi, elaboradas com diferentes pescados, entre os quais se destaca o atum vermelho cru.

John Sellar, encarregado do controle da aplicação da Cites, afirmou que a reunião de Doha também vai examinar o caso dos rinocerontes, expostos novamente à extinção, após terem sido recuperados dessa ameaça com uma campanha contra o comércio ilegal, desenvolvida entre 1980 e começo dos anos 90. O novo perigo para a espécie vem da Ásia, especialmente do Vietnã, onde nos últimos três anos ganhou força a superstição de que os chifres ralados do rinoceronte detêm o progresso do câncer nos doentes.

As comunidades de medicina tradicional do Vietnã e de outros países asiáticos afirmam que essa crença não tem nenhuma base científica. Mas os grupos do crime organizado exploram essa fraqueza “e, assim, vemos o pagamento de enormes somas pelos chifres com supostos poderes de cura”, disse Sellar. “O caso dos ursos polares também será discutido na Cites, porque muitas pessoas acreditam que a mudança climática os deixará sem gelo absoluto”, afirmou o especialista.

A Cites já protege os ursos polares e regula o comércio internacional de seus produtos. Porém, os Estados Unidos agora propõem uma proibição terminante a todo comércio de produtos derivados dessa espécie, pois está sob risco de extinção. Sellar ressaltou que o comércio de produtos derivados de ursos do Ártico alcança uma magnitude muito reduzida e que a essa atividade dedicam-se principalmente populações originárias das regiões mais setentrionais do Canadá, que mantêm uma relação de equilibrada subsistência com o animal. IPS/Envolverde



(IPS/Envolverde)


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