Mitologia indígena e aquecimento global

Data: 18/12/2009

Mitologia indígena e aquecimento global


Na mitologia dos baniwas, yanomamis e desanas, etnias que habitam o noroeste do Estado do Amazonas, fronteiriço com Colômbia e Venezuela, são encontradas explicações e advertências sobre a mudança climática. Segundo André Baniwa, vice-intendente do município de São Gabriel da Cachoeira, os efeitos do clima já foram previstos por homens de grandes poderes. Esses fenômenos já ocorreram em épocas remotas da humanidade, quando houve a ruptura da convivência harmônica entre os humanos, os animais e a natureza. Baniwa nasceu na comunidade de Tucumã-Rupitã, no alto Rio Içana, e foi vice-presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) entre 2005 e 2009.

O mito da criação, que também se refere ao fim do mundo para os yanomamis, menciona a “queda do gelo”, momento em que os humanos, submersos na água do dilúvio, guerreavam com os seres mágicos. Essa imagem constitui seu maior medo, segundo a premiada fotografa suíça Claudia Andujar, que trabalha com esse grupo há 30 anos. Para os yanomamis, isso pode ocorrer, se a humanidade não reverter o processo de destruição atual, como também dizem os baniwas.

José María Lana, habitante do alto Rio Negro, representante desana e membro da direção atual da Foirn, afirma que os indícios do anunciado pelos mitos já são perceptíveis. O Sol hoje queima de maneira diferente. O período de floração mudou. As chuvas, que caíam nos meses de abril e maio, agora, se concentram em julho e agosto. A piracema (quando os peixes sobem o rio para desovar) ocorre em um local diferente. Tudo isso interfere na reprodução das espécies animais e vegetais, alterando os ciclos de alimentação dos povos da floresta e interferindo em seus rituais tradicionais, que estão intimamente ligados aos ciclos naturais.

David Yanomami afirma que a fumaça produzida pela ação do homem é causadora desse grande dano. Este xamã e líder de sua etnia, premiado internacionalmente pela defesa dos indígenas, vive em Watoriki, no Estado de Roraima, na fronteira com a Venezuela. Proveniente das indústrias, bombas, queima de petróleo e também do veneno invisível que sai da terra na extração de minérios, a contaminação é causa de doenças, disse Yanomami. Muitas delas hoje são desconhecidas para os xamãs, que até há pouco tempo dispunham de métodos para lidar com as principais enfermidades que afetavam esses grupos.

Esses alertas são feitos por esses líderes há décadas, mas ainda não existe capacidade plena para ouvi-los, talvez pela dificuldade para compreender a visão tradicional desses grupos, carregada de simbologias e linguagens associativas. Mais conscientes do que os cidadãos das cidades da dependência humana da natureza e das florestas, os indígenas têm muito a ensinar e podem conduzir uma reflexão sobre o modelo de desenvolvimento até agora adotado.

Em setembro, representantes desses grupos se reuniram em Manaus para elaborar a carta dos povos indígenas da Amazônia brasileira sobre mudança climática, que faz parte do documento da delegação do Brasil na conferência sobre mudança climática que acontece em Copenhague, sobre a iniciativa Redução de Emissões de Carbono causadas pelo Desmatamento e pela Degradação (REDD). A carta expressa a posição destes grupos sobre o tema e reúne propostas de ações de mitigação, sobretudo no que se refere à preservação da Amazônia e à contribuição do conhecimento tradicional para as novas estratégias diante das alterações do clima.

Está comprovado que as terras indígenas são mais eficientes para evitar o desmatamento e reter o carbono. Os líderes reivindicam o direito à restituição integral de seus territórios e o recebimento de pagamento por serviços ambientais e pela comercialização de créditos de carbono, dentro do contexto da REDD, que pode ser um dos poucos êxitos da 15ª Conferência das Partes da Convenção Marco das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP-15).

Também querem que os fundos destinados a conter o desmatamento sejam regulamentados de maneira adequada às particularidades socioculturais das diferentes etnias e que se destinem a fortalecer suas organizações e apoiar seus programas e projetos de preservação da biodiversidade e do conhecimento tradicional. A floresta é vida. A vida é floresta. Se for eliminada, será destruído o sustento humano. Ela mantém a água pura, pilar fundamental para sustentar a vida no planeta.

Para essas populações, a selva possui lugares sagrados, habitados por seres “superiores”, com capacidade para “curar o planeta” e equilibrar os efeitos do aquecimento global, as alterações climáticas e as doenças. André Baniwa afirma que a tecnologia e o dinheiro nos enganam. O valor está na harmonia entre os humanos e entre estes e a natureza. É de esperar que as ações da COP-15, que termina hoje, considerem o que estas etnias dizem há tanto tempo.

* Marina Barbosa é mestra em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especialista em Desenvolvimento e integra a delegação do Brasil na COP-15.

Crédito da imagem: Cortesia de Claudia Andujar

Legenda: Imagem do livro “A vulnerabilidade do ser”.


Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.



(Envolverde/Terramérica)


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