Uma febre que não quer ceder

Data: 24/11/2009

Uma febre que não quer ceder


“Com uma metáfora futebolística, bem ao gosto dos políticos brasileiros, o Protocolo de Kyoto representou os dez minutos de aquecimento antes de começar de fato o jogo”, ironizou o cientista brasileiro Carlos Nobre. “O jogo de verdade deve começar agora, embora muitos desejassem permanecer indefinidamente na fase de aquecimento”, acrescentou Nobre, um dos autores dos informes de 1990, 2001 e 2007 do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre a Mudança Climática (IPCC), que recebeu o prêmio Nobel da Paz em 2007.

Estas opiniões de Nobre aparecem, junto com as de outros 22 destacados especialistas, no “Primeiro informe regional sobre mudança climática – América Latina diante dos efeitos irreversíveis de um planeta mais quente”, apresentado pelo Terramérica no dia 19 deste mês, em Montevidéu. Nobre, chefe do Centro de Ciência Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), se referia à urgente necessidade de os governos chegarem a algum acordo firme para reduzir a contaminação responsável pela mudança climática, na reunião que acontecerá em dezembro em Copenhague.

Na 15ª Conferência das Partes da Convenção Marco das Nações Unidas sobre Mudança Climática será discutido o futuro do Protocolo de Kyoto, único instrumento internacional que obriga a reduzir os gases que aquecem a atmosfera, e um novo contexto mundial para enfrentar a transformação do clima. O resultado do questionário que o Terramérica apresentou aos especialistas reflete o ceticismo predominante em relação aos resultados do encontro na capital dinamarquesa.

Enquanto isso, cerca de “600 milhões de habitantes da América Latina e do Caribe experimentam de maneira dramática os efeitos da mudança climática, com secas, inundações, derretimento de geleiras, aumento da temperatura, novas pragas agrícolas e enfermidades”, afirma o texto de 40 páginas, disponível no link http://www.tierramerica.info/docs/informe-cambio-climatico-2009.pdf

A região contribui pouco para a contaminação climática, mas se mostra muito vulnerável aos seus efeitos. O impacto mais prejudicial é o aumento da variabilidade climática, segundo as respostas obtidas. Onze dos 12 anos transcorridos entre 1995 e 2006 figuram entre os mais quentes nos registros existentes da temperatura mundial desde 1850. A temperatura da capital do México “aumentou mais de quatro graus desde o começo do século XX”, confirmou Fernando Tudela, subsecretário de Planejamento e Política Ambiental do país.

As variações mais ou menos bruscas – secas, chuvas excessivas, alterações nos períodos de geadas ou granizo – têm impacto na agropecuária, que vai perdendo sua capacidade de adaptação, agravando a pobreza da população que depende da atividade agrícola, diz o Informe. Segundo simulações feitas até 2010, a América Latina e o Caribe poderão sofrer perda de renda agropecuária de 12%, em um cenário de mudança climática leve, ou de 50%, em um cenário mais grave.

Vários entrevistados alertaram que são os próprios agricultores que relatam as transformações do clima. Os padrões climáticos alterados “são reconhecidos pela imensa maioria dos agricultores andinos, grandes observadores do clima, pois dele dependem seus cultivos e sua sobrevivência”, disse o antropólogo peruano Jorge Recharte, diretor do Programa Andino do The Mountain Institute. Contudo, inclusive no campo dos diagnósticos, a América Latina está indefesa.

“Para determinar o impacto na agricultura são necessárias bases de dados confiáveis de clima e produção agropecuária, que incluam períodos extensos, entre 80 e 100 anos. Na região, pouquíssimos países têm esse tipo de registro”, afirmou Walter Baethgen, diretor do Programa para a América Latina e o Caribe do Instituto Internacional de Pesquisas para o Clima e a Sociedade, da Universidade de Columbia, dos Estados Unidos.

O Centro da Água do Trópico Úmido para a América Latina e o Caribe sugere gerar informação climática no planejamento agrícola, melhorar as técnicas de irrigação e semeadura (incluindo a eliminação de pesticidas), otimizar o uso do solo e estabelecer planos de ação baseados em estudos de vulnerabilidade, priorizando medidas concretas e considerando todos os setores envolvidos.

É difícil que os países, especialmente os menores e pobres, possam abordar estas estratégias de forma isolada. O peruano José Marengo, de longa carreira científica no Brasil, alertou que na região “não há uma ação coordenada de intercâmbio ou de compartilhamento de informações climáticas e hidrológicas, e não há esforços comuns organizados entre países para enfrentar a mudança climática”. A veterinária e especialista em Sociologia Rural Edith Fernández-Baca Pacheco, do Peru, acrescentou que “os planos de contingência em nível regional ou sistemas de alerta para enfrentar eventos extremos, se existem, são muito incipientes”.

A agricultura regional também deve dar sua contribuição à mitigação da mudança climática, reduzindo o dióxido de carbono liberado pelo desmatamento e o metano produzido pela pecuária. O governo do Brasil deu um passo nessa direção no dia 13 deste mês, ao anunciar seu compromisso de reduzir entre 36,1% e 38,9% as emissões de gases estufa que produziria até 2020 se mantivesse as tendências atuais, com crescimento do produto interno bruto entre 5% e 6% ao ano.

Outra manifestação dramática é o acelerado derretimento de glaciais, uma das fontes de água doce mais importantes do planeta. Em 2004, o Nevado do Chacaltayua, montanha de 5.300 metros de altura que se ergue sobre a cidade boliviana de La Paz, “perdeu uma das pistas de gelo mais altas do planeta”, afirma o Informe. Embora os cientistas prevejam seu completo derretimento até 2013, este ano já não resta gelo em seu cume. O degelo colocará em risco o abastecimento de muitas cidades andinas.

Para o doutor em Meteorologia Marengo, um dos redatores de informes do IPCC, as alternativas para o abastecimento hídrico dos glaciais – dessalinização da água do mar, perfuração de poços ou integração de bacias por meio de obras de engenharia – são muito caras. Além disso, “os países andinos são muito dependentes da energia hidrelétrica” e várias centrais requerem a água dos glaciais, sobretudo na estação seca, disse o principal economista do Banco Mundial para a América Latina e o Caribe, John Nash.

A América Latina também sente outros efeitos do aquecimento que poderiam ser irreversíveis, como a transformação da Amazônia em savana, a deterioração e a perda dos mangues, o aumento do nível do mar e a perda da linha costeira. Outra evidência é a propagação de vetores de doenças para áreas que não constituíam seu hábitat, como o mosquito Anopheles, transmissor da malária, que se espalha a partir de zonas tropicais “a menos de mil metros do nível do mar”, para zonas acima dos dois mil metros.

A biodiversidade também está sob pressão. Um aumento entre três e quatro graus nos próximos 50 anos “será a causa principal da potencial morte das florestas amazônicas”, diz o Informe. Mesmo com cenários de emissões de gases relativamente baixas, regiões como América Central e os Andes experimentarão uma rotação de espécies de mais de 90%, alerta o Compêndio.

Mario Bidegain, da Unidade de Ciências da Atmosfera da Universidade da República do Uruguai, ressaltou as incertezas. “Ainda se discute em nível científico se, ao se chegar a um aumento superior a dois graus centígrados, não se daria lugar a um novo estado de equilíbrio do sistema climático que poderia fazer desaparecer do planeta grande parte da população humana”, alertou.



Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.

(Envolverde/Terramérica)



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