A briga das patentes

Data: 14/08/2009

A briga das patentes


O regime internacional de direitos de propriedade intelectual é uma barreira à transferência de tecnologias ambientais para os países em desenvolvimento? Esta é uma questão fundamental para a implementação do mecanismo de transferência de tecnologia, um dos eixos centrais do Plano de Ação de Bali, que lançou as negociações para o regime climático pós 2012. E opõe mais uma vez países ricos - detentores da maior parte das patentes de tecnologias para a diminuição das emissões de gases de efeito estufa - a nações em desenvolvimento, que reclamam dos elevados custos dessas tecnologias.

Insatisfeitos com a posição dos Estados Unidos, da União Europeia, do Canadá, do Japão e da Austrália, que defendem com unhas e dentes os direitos de propriedade intelectual, o Brasil, a China e demais países do G-77 esquentam o debate com opções ousadas para o futuro mecanismo de tecnologia da Convenção do Clima.

"Vários países do G-77 têm dito que a tecnologia é uma parte fundamental do pacote para Copenhague. Se não houver avanços nessa questão, os outros temas centrais poderão ser comprometidos", alerta Haroldo Machado Filho, assessor especial de mudanças climáticas do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).

A proposta do G-77, enquanto bloco, não menciona a revogação de patentes, como defende a Bolívia e outros países do grupo. Mas é incisiva na cobrança de compromissos dos países ricos com a facilitação e o barateamento do acesso a tecnologias ambientais para eficiência energética, geração elétrica com fontes renováveis, captura de metano em aterros sanitários e desenvolvimento de plantas agrícolas resistentes a secas, entre outras.

Uma das medidas incluídas na proposição do grupo é o licenciamento compulsório, popularmente conhecido como quebra de patente, de tecnologias ambientais relacionadas ao tema climático, que é uma das flexibilidades do Acordo sobre Aspectos da Propriedade Intelectual Relativos ao Comércio (Trips, na sigla em inglês) da Organização Mundial do Comércio (OMC).

No entanto, o artigo 31 do Trips, que prevê o licenciamento compulsório, restringe o uso do instrumento ao mercado doméstico. Uma empresa pode receber a licença compulsória do governo para fabricar um produto patenteado, caso não obtenha autorização do detentor da patente. Essa licença deve ser limitada em tempo e o detentor da patente precisa ser remunerado adequadamente, conforme determina o Trips. Não há necessidade de negociação prévia com o dono da patente em situações de emergência nacional e extrema urgência.

Segundo uma fonte da OMC, que pediu para não ser identificada, provavelmente a entidade precisaria aprovar declaração específica sobre mudanças climáticas para liberar a exportação de tecnologias ambientais sob licença compulsória a países em desenvolvimento.

Seria um documento inspirado na Declaração de Doha sobre Trips e Saúde Pública, de 2001, que facilitou o acesso de países pobres a medicamentos genéricos e patenteados.

Inspiração nos fármacos

Os negociadores do G-77 para o tema da tecnologia sempre se inspiram na indústria farmacêutica para justificar medidas similares na área climática. Em maio de 2008, o governo brasileiro emitiu a licença compulsória do princípio ativo do Efavirenz, antirretroviral usado no tratamento da Aids, após dois anos de negociação com o detentor de sua patente, o laboratório Merck, para baixar substancialmente o preço do medicamento.

A proposta da Merck ficou muito aquém do pleito do Brasil, que importou da Índia a versão genérica do medicamento e começou a fabricá-lo em fevereiro passado no laboratório Farmanguinhos, da Fiocruz, no Rio de Janeiro, ainda sob licença compulsória.

Embora a licença compulsória esteja prevista no Trips, seu uso não é visto com bons olhos pelas nações ricas nem pelas multinacionais farmacêuticas. No lugar de flexibilizar o regime de patentes, os países desenvolvidos querem fortalecer os direitos de propriedade intelectual e evitar que a OMC aprove novas flexibilidades no Trips, agora advindas de demandas das negociações climáticas. Argumentam que as patentes estimulam a inovação tecnológica ao tornar pública a invenção e remunerar o detentor da tecnologia pelo investimento efetuado em pesquisa e desenvolvimento.

Entretanto, a patente não pode também inibir a própria inovação? "A propriedade intelectual é potencialmente um incentivo e um obstáculo à transferência de tecnologia", comenta o artigo Climate change, technology transfer and intellectual property rights, publicado pelo Centro Internacional para o Comércio e o Desenvolvimento Sustentável da Suíça .

"Um nível excessivo de proteção dos direitos de propriedade intelectual pode sufocar a inovação ou tornar mais difícil ou custoso o acesso à tecnologia", alerta o documento, que faz parte de uma série de oito artigos discutidos no seminário Comércio e Mudanças Climáticas, realizado em junho de 2008 em Copenhague, com apoio do governo da Dinamarca.

Caso clássico de barreira à transferência de tecnologia associada a questões ambientais foi a tentativa da Índia de produzir o gás refrigerante HFC-134a para substituir o CFC, uma das substâncias químicas responsáveis pelo buraco na camada de ozônio.

Segundo relato de Simon Walker, em um estudo sobre o Trips para a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), um fabricante indiano de CFC revelou que o dono de uma das patentes do HFC-134a estipulou entre US$ 20 milhões e US$ 25 milhões o valor da licença para que sua empresa utilizasse a tecnologia.

A cifra superava em quase três vezes os US$ 8 milhões que a indústria indiana calculou em 1996 como valor máximo para a licença para que o fabricante do gás obtivesse margem de lucro razoável.

Artilharia pesada dos ricos

No lado dos desenvolvidos, os argumentos pró-patentes serão sustentados na COP 15 por estudos como o "Are IPR a barrier to the transfer of climate change technology?", produzido para a Direção de Comércio da Comissão Europeia, que o publicou em janeiro passado.

O estudo pondera que não é correto usar o caso dos fármacos para defender a quebra de patentes nas tecnologias ambientais. Argumenta que, diferentemente da área de medicamentos, o mercado de tecnologias ambientais é menos concentrado, o que favorece a concorrência e evita abusos nos preços.

Além disso, não necessariamente as tecnologias patenteadas são mais caras e há muitas tecnologias ambientais sem patentes à disposição dos países em desenvolvimento. O alto custo de algumas tecnologias de redução nas emissões de carbono é atribuído mais ao fato de ainda serem pouco difundidas que por serem protegidas por patentes.

Contudo, o próprio estudo reconhece que um corte mais ambicioso nas emissões dos países emergentes e mais pobres poderá demandar o uso de tecnologias pouco difundidas, mais caras, particularmente turbinas eólicas oceânicas, energia solar fotovoltaica e biocombustíveis de segunda e terceira gerações. E traz uma boa notícia para países com grande porção de seus territórios coberta por florestas ao mostrar que não é significativo o grau de proteção por patentes de tecnologias de florestamento e que diminuem o desmatamento. Isso tende a reduzir bastante os gastos desses países com a mitigação de gás carbônico, que têm na floresta um de seus principais sorvedouros.

O estudo também sustenta que os direitos de propriedade intelectual não são empecilho à transferência de tecnologias com baixa emissão de carbono para a vasta maioria dessas nações. Tal conclusão baseia-se na análise de uma amostra de 21.842 patentes registradas em países em desenvolvimento. Apenas 0,1% das patentes da amostra foram registradas em países de baixa renda.

O embaixador Rubens Ricupero, que foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) de 1995 a 2004, considera frágil a conclusão do estudo. "Os países mais pobres têm pouca importância para o clima global. Cerca de 80% das emissões concentram-se em 14 países emergentes e ricos, incluindo a União Europeia. É nesse grupo que as tecnologias de mitigação são mais relevantes", assinala Ricupero, hoje diretor da Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado, a Faap (mais sobre os maiores emissores aqui).

Um acordo global de corte nas emissões para o período pós 2012 dependerá do apoio financeiro e tecnológico das nações desenvolvidas à descarbonização das economias emergentes, sobretudo China e Índia, sublinha Ricupero. "É o preço que os países ricos terão de pagar para conseguir a adesão dos emergentes."

Ele ilustra seu argumento com uma previsão sombria. Nos próximos 20 anos, esses dois países responderão por três quartos do aumento no consumo mundial de carvão, o mais sujo dos combustíveis fósseis.


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Entrevista - Uma luta de desiguais

Transferência de tecnologia é uma questão política, de transferência de poder. A opinião é de um dos maiores especialistas mundiais em transferência de tecnologia, o brasileiro Sérgio Trindade, de 68 anos, que há 23 anos vive nos Estados Unidos. Ao lado de outros colaboradores do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), ganhou o Nobel da Paz de 2007. Por telefone, Trindade concedeu de seu escritório em Nova York a seguinte entrevista.

Há desequilíbrio entre os países na discussão sobre transferência de tecnologia nas negociações climáticas?

Parece que é uma questão técnica, mas não é. É uma questão política. Quem tem tecnologia tem poder. Quando escrevi o capítulo 34 da Agenda 21, este chegou ao Rio de Janeiro inteiramente entre colchetes, porque tratava da transferência de tecnologia. Se você der tecnologias de graça, a esmagadora maioria dos países não conseguirá usá-las (por falta de capacidade técnica). Entre eles, os países-ilhas, os países com secas, enfim, os mais vulneráveis. É uma tragédia, uma luta de desiguais.

Mesmo os emergentes?

Países como China, Índia, Brasil e África do Sul têm mais capacidade. Mas o grosso dos países em desenvolvimento não é emergente. Uma representação de Bungadunga (país imaginário) possui um ou dois diplomatas que precisam cobrir discussões da ONU em Genebra, Nova York e Roma.

Canadá, Japão, Austrália e demais países da OCDE têm hordas de pessoas para apoiar seus negociadores na discussão do tema. Uma delegação dos Estados Unidos possui umas cem pessoas para discutir o assunto.

O senhor defende soluções de mútuo benefício como a melhor alternativa de desenvolvimento tecnológico para o bloco dos países em desenvolvimento. Como isso se daria?

Em vez, por exemplo, de forçar uma empresa que tenha equipamentos de maior eficiência energética a ceder essa tecnologia de graça, por que não incentivá-la a investir no Brasil com essa tecnologia? E criar capacidade local não só de operar, mas também de entender os fundamentos do que é transferido, ter capacidade de melhorar o que vai ser transferido e vender de volta a quem lhe vendeu inicialmente.

Não podemos ter uma posição dogmática. Tem de olhar os dois lados para "inventar" soluções de mútuo benefício. Não adianta uma solução que seja de benefício unilateral porque não é sustentável, não vaic olar.

Qual seria o melhor modelo na Convenção do Clima para financiar a transferência de tecnologia aos países em desenvolvimento?

É muito mais prático ter um mercado do que um fundo (para financiar a transferência de tecnologia aos países em desenvolvimento), porque aí você permite que as forças de oferta e demanda se manifestem. Os beneficiários serão os que tiverem a capacidade de se apresentar ao mercado com boas ideias e perspectivas econômicas. A luta de mais longo prazo seria a de capacitar os países a se beneficiar das tecnologias. Os grandes países exportadores de tecnologia são também grandes importadores de tecnologia.

As pessoas às vezes não se dão conta de que o Japão importa muita tecnologia e no início de sua reconstrução no pós-guerra era provavelmente o maior importador de tecnologia do mundo. A grande medida da absorção de tecnologia por um país importador é a capacidade de melhorá-la e vendê-la de volta, melhorada, para quem a vendeu originalmente.

As pessoas pensam na transferência de tecnologia como um supermercado. Isso não é um supermercado. Você precisa ter capacidade de escolher e melhorar. Para ter essa capacidade, precisa ser um praticante, com experiência de ter feito desenvolvimento tecnológico.

É possível prover tecnologias patenteadas a custos reduzidos sem usar o licenciamento compulsório?

Não sou contra o licenciamento compulsório, mas ele é o último recurso. O que é o sistema de propriedade intelectual? É basicamente a concessão de um monopólio por um período limitado para estimular o investimento privado em conhecimento, mas a maior beneficiária é a sociedade. Se a sociedade não estiver se beneficiando, aí cabe o licenciamento compulsório. Mas, antes de chegar lá, é muito mais construtivo montar situações de interesse mútuo.


Fonte: Página 22 - José Alberto Gonçalves



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