Crescimento econômico, meio ambiente e sustentabilidade social - parte 5/final

Data: 28/07/2009

Crescimento econômico, meio ambiente e sustentabilidade social - parte 5/final


Perspectivas que moldam abordagens de práticas sociais

As diferentes perspectivas éticas, combinadas com a defesa dos valores sociais com os quais elas estão respectivamente ligadas, fundamentam abordagens opostas para as práticas e responsabilidades sociais. Quando se prioriza o crescimento econômico, vemos o fortalecimento da perspectiva de procurar inovações tecnocientíficas para servir a interesses políticos e soluções tecnocientíficas para problemas; não apenas para a geração de inovações médicas, energéticas, agrícolas e de comunicações, por exemplo, mas também para resolver a atual crise ambiental. Esta perspectiva fundamenta a atitude de que “não há alternativas” à tecnociência e do que é permitido dentro da trajetória do capital e do mercado; e que se a implementação de inovações tecnocientíficas causa problemas ambientais, inovações tecnocientíficas posteriores fornecerão a solução para os problemas - podemos então aspirar ao “crescimento sustentável”. Por outro lado, aqueles que buscam um novo equilíbrio entre sustentabilidade e atividade econômica que sirva ao bem-estar humano afirmam que não é científico (ou seja, não é apoiado por provas empíricas) enfatizar tanto as soluções tecnocientíficas para os problemas, e ver a tecnociência como a única chave para a elaboração de políticas, em vez do conjunto total (de forma mais geral) de resultados obtidos objetivamente por pesquisas realizadas sob o pluralismo metodológico. Eles não negam a importância da tecnociência, mas mantêm que descobrir que alternativas que podem existir para servir o bem-estar humano está aberto a investigações empíricas, incluindo aquelas conduzidas sob estratégias ligadas aos valores sociais da sustentabilidade e da participação popular. Além do mais, para eles, qualquer busca de soluções de problemas (por exemplo, a fome disseminada no mundo) precisa estar envolta por uma análise causal de como o problema surgiu e é mantido que não exclua a consideração das estruturas e programas do capital e do mercado como parte do conjunto de causas potenciais - senão, “soluções” tecnocientíficas podem ser implementadas sem afetar as causas do problema, o que as condenaria desde o começo. Em vez de tratar propostas de políticas públicas em termos de “crescimento sustentável” (pois isso pressupõe que o crescimento per se não é parte do problema), eles tentam identificar - através de deliberações democráticas (em que alguns prevêem que os novos arranjos podem surgir dialeticamente das práticas dos movimentos populares e de seus aliados (Lacey, 2006a: cap. 6)) - arranjos sociais em que um novo equilíbrio se torna possível entre a sustentabilidade e as atividades econômicas que servem o bem-estar humano.

As responsabilidades dos cientistas

Tendo em vista a segunda perspectiva, vemos que a identificação da ciência com a tecnociência, e, assim, a virtual exclusividade da pesquisa conduzida dentro da abordagem descontextualizada, reforçada pelos valores do progresso tecnológico, fundamenta uma visão inadequada da responsabilidade dos cientistas, qua cientistas. De acordo com esta visão inadequada, é comum dizer que a crise ambiental e a desigualdade na distribuição dos benefícios derivados da ciência não fazem parte da responsabilidade dos cientistas enquanto tais, e que em problemas de aplicação a responsabilidade dos cientistas é apenas fornecer conhecimento objetivo para a criação de aplicações, em princípio imparcialmente em relação a perspectivas de valores (Forge, 2008). Como o conhecimento é realmente usado não é responsabilidade dos cientistas, já que isto está fora de seu poder, e os cientistas nada podem fazer se aqueles que têm o poder para utilizar o conhecimento científico, por exemplo, governos e grandes corporações, o fizerem de forma que não concorde com a neutralidade. Isto não é suficiente. Eu sugiro que faz parte da responsabilidade dos cientistas perceberem as condições socioeconômicas da produção do conhecimento científico e do espaço de alternativas, e garantir que, quando o conhecimento científico é aplicado, todo conhecimento relevante seja gerado e considerado - e, quando não for, insistir que mais pesquisas sejam realizadas, ou (pelo menos) não emprestar a autoridade da ciência a propostas que não foram pesquisadas adequadamente.

Dois tipos de questões estão envolvidos quando se aplica o conhecimento científico: eficácia e legitimidade. Eficácia: uma aplicação funcionará nas condições em que ela será implementada? Legitimidade: é legítimo implementá-la nestas condições? A legitimidade envolve questões de valores éticos - mas também questões de conhecimento, por exemplo, de efeitos colaterais, divisão igualitária de benefícios, e métodos alternativos de produção. Mas obter entendimento destes fenômenos não tem sido uma questão urgente ou prioritária para as instituições científicas, um entendimento que poderia fundamentar esforços para corrigi-los - e só agora, com a crise ambiental diante de nós depois que o dano já foi causado, é que pesquisas abrangentes estão sendo realizadas sobre o dano que ocorreu e os riscos que ainda não foram enfrentados[i">. Ainda assim, a maioria destas pesquisas não fornece, de forma sistemática, estratégias que não se encaixem na abordagem descontextualizada. Além do mais, refletindo as pressuposições dos valores do progresso tecnológico (descritos acima), elas freqüentemente envolvem basicamente usar as próprias inovações tecnocientíficas numa tentativa de corrigir problemas ambientais, submetendo, desta forma, a resolução destes problemas ao serviço dos interesses do capital[ii">. As prioridades científicas têm dado muito mais atenção a questões de eficácia do que legitimidade. Então, para entender a crise ambiental e a desigualdade da distribuição dos “bens” científicos, precisamos levar em conta não apenas os interesses especiais associados com as implementações, mas também o fato de que o conhecimento científico que pode nos ajudar com questões de legitimidade é muito subdesenvolvido. Isto foi ilustrado pelo caso dos transgênicos, sobre o qual eu argumentei que questões de legitimidade precisam ser investigadas usando várias abordagens metodológicas complementares - não apenas a abordagem descontextualizada, cuja pesquisa em biologia molecular que levou ao desenvolvimento dos transgênicos é exemplar, mas também a pluralidade de metodologias necessária para investigar a agroecologia - uma investigação que é necessária não apenas para explorar o potencial de uma forma alternativa de agricultura (que não usa transgênicos e não é fundamentada centralmente por desenvolvimentos tecnocientíficos), mas também para explorar os riscos dos transgênicos que surgem por causa de seu papel na geração de crescimento econômico.

A responsabilidade dos cientistas enquanto cientistas envolve conduzir investigações usando a variedade completa de abordagens metodológicas necessária para fornecer o conhecimento pressuposto em juízos de legitimidade, e também o conhecimento que pode contribuir para reverter a intensificação da crise ambiental. Exercê-la não é compatível com o controle das instituições e organizações científicas pelo interesse dos valores do progresso tecnológico sem que ele seja contrabalançado por uma forte representação daqueles que endossam o Princípio da Precaução e sua visão ética da responsabilidade. Assim, exercê-la bate de frente com os interesses que enfatizam o crescimento econômico. Entretanto, a não ser que ela seja exercida, levando em conta todas as dimensões que eu identifiquei, os cientistas serão cúmplices dos projetos sociais que perpetuam e ampliam a crise da sustentabilidade social e ambiental (além do mais, a não ser que ela seja exercida, os valores tradicionais da atividade científica - objetividade, neutralidade e autonomia - realmente se tornarão relíquias do passado). É claro que simplesmente propor este argumento não é suficiente para mudar as coisas. Entretanto, o que quero dizer é que lidar com a crise ambiental que enfrentamos hoje em dia requer que os cientistas exerçam sua responsabilidade da forma que esbocei. Apoiar seus valores tradicionais também indica a aceitação destas responsabilidades.



Referências

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[i"> Ver Dupas, 2008, para muitos exemplos dos resultados de tais pesquisas.

[ii"> Há sinais de que isto pode estar mudando. Por exemplo, estão se levantando questões sobre inovações com biocombustíveis e a pesquisa que os fundamenta, e estudos resultantes foram publicados em importantes revistas científicas, como a Science, prevendo danos sociais e ambientais generalizados que provavelmente ocorrerão se nos apressarmos demais na utilização desta nova tecnologia (especialmente projetos sendo desenvolvidos nos EUA para obter etanol do milho). Ver Fargione, et al (2008); Searchinger, et al (2008).



*Hugh Lacey é filósofo da ciência. Bacharel em matemática, com mestrado em História e Ffilosofia da Ciência pela Universidade de Melbourne e PhD em História e Filosofia da Ciência pela Universidade de Indiana, Lacey é um crítico da maneira como a ciência e a tecnologia são praticadas atualmente. Dedica-se especialmente ao debate de questões ligadas à agricultura, questionando a biotecnologia e os alimentos transgênicos.

Ensaio publicado em Meio ambiente e crescimento econômico: tensões estruturais / Gilberto Dupas (org) - São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 91-130.


Fonte: Mercado Ético


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