Crescimento econômico, meio ambiente e sustentabilidade social - parte 4

Data: 28/07/2009

Crescimento econômico, meio ambiente e sustentabilidade social - parte 4


Tensões ligadas a valores sociais, princípios éticos e perspectivas sobre práticas sociais

As tensões descritas em termos gerais na primeira seção deste artigo relacionadas a prioridades de pesquisa e assuntos metodológicos estão, como vimos, todas presentes nas controvérsias sobre transgênicos. Este também é o caso da tensão fundamental relacionada aos valores refletidos nas práticas científicas. Quando a ciência se torna virtualmente idêntica à tecnociência, como ocorre na lógica do capital (na “ciência de interesses privados”), os valores tradicionais da ciência - objetividade, neutralidade e autonomia - são enfraquecidos (ver Krimsky, 2003). Agora eu desenvolverei comentários feitos acima na subseção “‘nenhum risco’ e ‘nenhuma alternativa’”. A objetividade é enfraquecida porque (sem a percepção da necessidade do pluralismo metodológico) as autoridades científicas endossam reivindicações como “nenhum risco”, “nenhuma alternativa” e “uma inovação promissora está prestes a ser implementada”, reivindicações que não podem ser tratadas adequadamente dentro das limitações das metodologias tecnocientíficas (todas encaixando-se na abordagem descontextualizada). Quando a autoridade da ciência é colocada por trás de “não há evidência científica da existência de riscos sérios”, por exemplo, ela normalmente engana ao insinuar que evidências científicas convincentes apóiam a tese de que não há riscos significativos. Quando é colocada por trás de, por exemplo, “estamos prestes a resolver os problemas de alimentação e nutrição dos pobres nos países emergentes”, ela torce para que sua platéia suponha (falsamente) que há evidências fortes para apoiar isto, ainda que a confiança expressa em enunciados como este apenas reflita expectativas (não confirmadas), ou meras esperanças, de que “a tecnociência vai resolver”. E, quando colocada por trás de “não há alternativas”, ela chega perigosamente perto de identificar isto com “não há alternativas dentro da trajetória do capital e do mercado” (Lacey, 2006a: cap. 5, seção 6). Nestas situações, mal se consegue distinguir o discurso da ciência da retórica da propaganda - como se o objetivo de proferir os enunciados fosse produzir certos efeitos desejados (ou rebater oposição) independentemente da existência de testes de acordo com a objetividade. Para enfrentar esta retórica, Pestre (2008) sugere enfaticamente que adotemos “o dever da objetividade”.

Além do mais, a neutralidade e a autonomia não conseguem mais funcionar como ideais reguladores, porque os resultados científicos que são realmente obtidos, apesar de se conformarem à objetividade, em sua aplicação servem especialmente bem a interesses comerciais, muitas vezes em detrimento de outros interesses menos poderosos e, como discutido acima, por que não apenas prioridades de pesquisa, mas também as metodologias privilegiadas na pesquisa se tornam subordinadas a interesses comerciais. É claro que esta não é a última palavra, pois sem dúvida muitos cientistas consideram estes valores fora de moda, relíquias do passado[i">. Mas, então não se pode dizer que a ciência mostre independentemente que projetos envolvendo inovação tecnocientífica são os únicos projetos viáveis. Especialmente a autonomia, como eu a caracterizei acima (caixa 1) como um valor das práticas científicas, tende a ser vista como uma relíquia do passado (ver também a nota 20). Em nossos tempos individualistas, este tipo de autonomia não é muito bem compreendido nem aceito: em vez disso, a autonomia é normalmente entendida hoje em dia em termos da ausência de restrições externas à escolha individual. Muitos cientistas aferram-se à autonomia pessoal, eles querem estar livres para fazer qualquer pesquisa que quiserem, sob quaisquer auspícios que escolherem. Podemos nos perguntar por que os cientistas tendem a usar sua autonomia pessoal para enfatizar questões ligadas à eficácia mais do que à legitimidade - mesmo que eles afirmem que a ciência é capaz, em princípio, de abranger todos os fenômenos; e isto inclui fenômenos sociais e ecológicos?

As tensões e os valores sociais contestados

Dentro da lógica do capital, como afirmei e ilustrei com o caso dos transgênicos, a ciência tende a ser reduzida à tecnociência, e suas estratégias de pesquisa àquelas que se encaixam na abordagem descontextualizada. Entretanto, não é apenas dentro da lógica contemporânea do capital que muitos cientistas pensam que faz parte da natureza da ciência adotar a abordagem descontextualizada. Isto acontece desde o princípio da ciência moderna no século XVII. Às vezes o compromisso com uma metafísica materialista está por trás disto, tanto antigamente quanto agora (Lacey, 1998: caps. 1 e 5; 2009). Entretanto, como argumentei detalhadamente em outros lugares (Lacey, 1999: cap. 6; 2008c: parte I), mais importante é o fato - já antecipado por Bacon em seu famoso “conhecimento é poder” - que adotar a abordagem descontextualizada tem relações, que se reforçam mutuamente, com um conjunto de valores sociais sobre o controle de objetos naturais, que chamarei de valores do progresso tecnológico[ii">. Estes valores incluem (caixa 3): conferir alto valor ético e social à expansão do alcance da capacidade humana de exercer controle sobre objetos naturais, especialmente quando incorporados em inovações tecnocientíficas; a inovações que aumentam a penetração de tecnologias (objetos, sistemas, soluções de problemas) cada vez maior em cada vez mais domínios das vidas (cotidiana e doméstica), experiências e instituições modernas; e à definição de problemas em termos que permitam soluções tecnocientíficas. Possuir estes valores também envolve não subordinar o valor do controle dos objetos naturais sistematicamente a quaisquer outros valores éticos e sociais, mas, ao contrário, dar legitimidade prima facie à implementação de inovações tecnocientíficas, mesmo tolerando um grau considerável de perturbação social e ambiental em seu favor.


Em tempos recentes, interesses comerciais (e militares) se tornaram os principais abastecedores dos valores do progresso tecnológico; isto não apenas fortaleceu sua incorporação pela sociedade, mas também levou, muitas vezes, a sua interpretação tendo em vista sua contribuição para a promoção dos valores do capital e do mercado. Ao mesmo tempo, afirma-se que possuir os valores do progresso tecnológico é coerente e, supostamente, racionalmente justificado apelando-se a pressuposições como as seguintes:

A inovação tecnocientífica constante expande o potencial humano e fornece benefícios que podem ser disponibilizados para todos os seres humanos.
Soluções tecnocientíficas podem ser encontradas para virtualmente todos os problemas práticos (da medicina, agricultura, comunicações, transportes, fornecimento de energia, etc.), incluindo aqueles causados pelos “efeitos colaterais” das próprias implementações tecnocientíficas.
Para a maioria destes problemas existem apenas soluções tecnocientíficas.
Os valores do progresso tecnológico representam um conjunto de valores universais que deve ser parte de qualquer perspectiva de valores viável hoje em dia - não há alternativas viáveis.
Eu chamo estas afirmações de “pressuposições”; elas tendem a ser tratadas praticamente como truísmos, que devem ser seguidos, mas não questionados por aqueles que tomam as decisões nas instituições hegemônicas da sociedade contemporânea, como se a consistência com eles fosse integral para a realização da investigação científica. Elas raramente são questionadas na formulação de políticas agrícolas, dando assim credibilidade às afirmações de que os transgênicos são cruciais para qualquer agricultura do futuro que possa ter esperança de suprir as necessidades de alimentação e nutrição do mundo, que se pode desenvolver transgênicos que contribuam para o combate de problemas até então intratáveis da agricultura em regiões empobrecidas, que seus riscos não precisam ser levados muito a sério, e que práticas como a agroecologia podem ser ignoradas (Lacey, 2006a). Mas estas propostas são, em termos gerais, factuais; elas podem ser investigadas empiricamente - entretanto, elas claramente não podem ser investigadas adequadamente sob estratégias que se encaixem na abordagem descontextualizada. Quando se identifica a pesquisa “científica” com a que é conduzida na abordagem descontextualizada, não pode haver investigação “científica” destas afirmações (ver nota 10). Isto exacerba as ameaças à objetividade mencionadas acima. Quando estas propostas são tratadas como truísmos, em vez de serem sujeitas apropriadamente à pesquisa empírica, elas são tratadas - de forma contrária à objetividade - como se fossem aceitas em nome da ciência, ainda que evidências relevantes não tenham sido encontradas (ou sequer procuradas) para elas. A não ser que o pluralismo metodológico seja aceito, e que a pesquisa seja conduzida sob uma variedade apropriada de estratégias, provas relevantes para o teste empírico destas pressuposições não podem ser obtidas.

Como foi observado acima, manter os valores do progresso tecnológico reforça a adoção virtualmente exclusiva da abordagem descontextualizada na pesquisa científica. Este é um reforço poderoso, pois estes valores encontram grande incorporação na maioria das principais instituições econômicas, sociais e políticas contemporâneas. Entretanto, há grupos que possuem valores que contestam os valores do progresso tecnológico[iii">, grupos que estão buscando um equilíbrio diferente entre sustentabilidade social e ambiental e a atividade econômica que melhore o bem-estar humano. Estes grupos incluem aqueles que endossam o Princípio da Precaução, cuja justificação inclui os valores (entre outros) dos direitos humanos universais, responsabilidade ambiental, igualdade inter e intrageracional, e democracia participativa, assim como aqueles (por exemplo, muitos dos movimentos que participam do Fórum Social Mundial) que mantêm os valores da participação popular, que incluem (ver Caixa 4), além dos valores ligados à sustentabilidade, valores como solidariedade, o bem-estar de todas as pessoas em vez da primazia da propriedade e do mercado, a emancipação humana, e o fortalecimento da pluralidade e diversidade dos valores sociais[iv">. Quando estes valores são mantidos, é provável que a justificativa pelo pluralismo metodológico seja mais aparente, e esta é uma condição necessária (mas não suficiente) para uma expressão mais adequada da objetividade, neutralidade e autonomia[v">.

As tensões e conflitos éticos fundamentais

Buscar o crescimento econômico, numa forma que subordina completamente a sustentabilidade social e ambiental a ele, levou à atual crise ambiental e coloca obstáculos para a sua superação, pois ela dificulta pensar na criação de um novo tipo de equilíbrio entre a atividade econômica que sirva bem tanto ao bem-estar humano quanto à sustentabilidade. A tensão entre priorizar o crescimento econômico e lutar por um novo tipo de equilíbrio tem reflexos - e causas parciais - na forma em que as atividades científicas são conduzidas. Eu afirmei que estes reflexos não envolvem apenas prioridades para a pesquisa científica, mas também assuntos metodológicos (a exclusividade da abordagem descontextualizada, ou o pluralismo metodológico), todos com raízes na questão de se os valores tradicionais das práticas científicas devem ser subordinados aos valores do progresso tecnológico (reforçados pelos do capital e do mercado) ou não. Sugestões de que a tensão também reflete conflitos sobre a posição ética fundamental que deve ser trazida para a pesquisa científica (Lacey, 2008a) já estão presentes no texto acima. Eu as explicitarei agora.

Eu incluí, nos valores do progresso tecnológico, que o valor das inovações tecnocientíficas não seja subordinado sistematicamente a qualquer outro valor social (incluindo a sustentabilidade social e ambiental). Na prática, isto é inseparável de adotar o princípio ético que chamarei de princípio da pressuposição da legitimidade das inovações tecnocientíficas (ver caixa 3): normalmente, a não ser que existam provas científicas da possibilidade de riscos sérios, é legítimo implementar - sem demora - aplicações eficazes de conhecimento científico confirmado objetivamente, e mesmo tolerar um grau de perturbação social e ambiental em seu favor (”científico” aqui é interpretado em termos da abordagem descontextualizada, e então apenas riscos diretos são normalmente investigados antes da implementação). Este princípio é inteiramente oposto ao Princípio da Precaução, que propõe atrasos na implementação de inovações tecnocientíficas para a realização de pesquisas adequadas sobre o conjunto completo de riscos (incluindo riscos indiretos) e alternativas (COMEST, 2005; Lacey, 2006b)[vi">. O Princípio da Precaução é inseparável da posição ética mais geral de que é irresponsável participar do tipo de pesquisa que leva a inovações tecnocientíficas, a não ser que pesquisas rigorosas e sistemáticas de dimensões comparáveis sobre as conseqüências (riscos) ecológicas e sociais a longo prazo de sua implementação, levando em conta as condições socioeconômicas das implementações planejadas, sejam conduzidas, e a não ser que pesquisas adequadas, localizadas num espaço de alternativas bem escolhido e pertinentes para a avaliação do valor social geral (benefícios) das implementações, seja conduzida.





[i"> Eu duvido que qualquer cientista afirme que a objetividade é uma relíquia do passado, porque isto seria equivalente a reconhecer que a autoridade que a ciência reivindica não tem as credenciais necessárias para apoiar a racionalidade de seu acatamento universal. Todavia, como indicado há pouco, a objetividade é enfraquecida quando a autoridade científica é exercida nas três formas especificadas. Em seu domínio próprio, quando se trata, por exemplo, dos resultados estabelecidos de pesquisas realizadas dentro da abordagem descontextualizada e, assim, quando se trata do conhecimento que baseia os objetos tecnocientíficos e explica sua eficácia, a objetividade permanece sendo o principal valor regulador. Entretanto, mesmo ali vemos sinais de seu enfraquecimento, por exemplo, cada vez mais casos estão surgindo na pesquisa farmacêutica de cientistas subordinando a objetividade a seus fortes interesses comerciais, fazendo afirmações exageradas ou falsas sobre a eficácia de um novo medicamento para tratar de uma certa condição (Carroll, 2008). Quando estes casos são expostos, entretanto, eles tendem a ser considerados deformações da prática científica, indicando que a objetividade está funcionando como um valor regulador.

[ii"> Para uma elaboração posterior detalhada dos valores do progresso tecnológico e suas pressuposições, ver Lacey (1999: cap. 6; 2005: cap. 1; 2008c: cap. 1).

[iii"> Eles não negam valor para a inovação tecnocientífica per se, mas emitem juízos sobre ela (muitas vezes positivos), caso a caso, dependendo de como ela se encaixa nos interesses moldados por suas perspectivas de valores (ver nota 14). Além do mais, eles reconhecem que, devido à aliança atual entre os valores do progresso tecnológico e os valores do capital e do mercado, tem havido um crescimento cada vez maior de descobertas tecnocientíficas.

[iv"> Ver Lacey (2006a: cap. 1) para uma elaboração detalhada dos valores da participação popular, e um contraste explícito deles com os valores do capital e do mercado.

[v"> Para o argumento detalhado, e reflexões sobre como a autonomia precisa ser reinterpretada, ver Lacey (2006b).

[vi"> O desenvolvimento do Princípio da Precaução foi influenciado pelo muito discutido Princípio da Responsabilidade de Hans Jonas, que recebeu diferentes formulações do autor: “Aja de forma que os efeitos de tuas ações sejam compatíveis com a permanência da vida humana”; “Aja de forma que os efeitos de tuas ações não sejam destrutivos para a possibilidade futura de tal vida”; “Não comprometa as condições para uma continuação indefinida da humanidade na Terra”; e “Em tuas escolhas atuais, inclua a integridade futura do Homem entre os objetos de tua vontade” (Jonas, 1984, p. 11). Ele também pode ser considerado uma tentativa de deixar mais concretas e explícitas as implicações para as atividades científicas do princípio de Jonas.

Fonte: Mercado Ético


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