Crescimento econômico, meio ambiente e sustentabilidade social - parte 2

Data: 28/07/2009

Crescimento econômico, meio ambiente e sustentabilidade social - parte 2


O caso dos transgênicos

Usando o caso dos transgênicos[i">, agora elaborarei como privilegiar a abordagem descontextualizada a ponto de virtualmente excluir outras estratégias está no coração das tensões nas atividades científicas de que estou tratando.

Pesquisas que foram em grande parte financiadas por grandes corporações do agribusiness levaram à descoberta de que material genético retirado de outras espécies pode ser inserido no genoma de uma planta para que ela desenvolva características específicas; e interesses comerciais explicam a prioridade dada ao desenvolvimento de plantas que adquiram características de resistência a herbicidas e pesticidas. A introdução dos transgênicos fornece um caso exemplar de “ciência de interesses privados”. Apesar de não afetar a objetividade dos resultados obtidos, isto ajuda a explicar que eles têm pouca aplicabilidade, e, por isso, recebem pouco valor social e ético onde interesses ligados a certas formas de cultivo, como a agroecológica, são proeminentes. Sua objetividade não garante sua neutralidade. Todavia, não é apenas onde os interesses comerciais predominam que a pesquisa e desenvolvimento de transgênicos recebem grande valor social e ético, mas também, por exemplo, naquelas instituições que buscam usar transgênicos para abordar problemas enfrentados por pequenos fazendeiros em países empobrecidos, por exemplo, desenvolvendo batatas-doce transgênicas resistentes a infestações de vírus locais no leste da África, ou o “arroz dourado” para cuidar de deficiências de vitaminas nas dietas de crianças no Sudeste Asiático. Essas instituições “humanitárias” às vezes criticam prioridades definidas comercialmente dos tipos de transgênicos a se investigar como enviesadas, mas não que a investigação de transgênicos é uma prioridade. Elas afirmam que a pesquisa científica deve servir objetivos “humanitários” mais valiosos ética e socialmente, e que ela poderia fazê-lo no caso dos transgênicos. Entretanto, elas não pensam que o papel dos interesses comerciais possa questionar a integridade da ciência; e na verdade elas freqüentemente afirmam que a pesquisa orientada comercialmente forneceu as condições necessárias para sua própria pesquisa orientada ao humanitarismo. Como aqueles com interesses comerciais, eles afirmam que os transgênicos terão, e devem ter, papel cada vez mais importante na agricultura do futuro. E, sem dúvida, eles terão - pelo menos a curto prazo, pois o poder do agribusiness é formidável, e subsídios do governo dos EUA e políticas da Organização Mundial do Comércio ajudam a garantir a lucratividade do uso de transgênicos; e o novo entusiasmo por combustíveis derivados de produtos agrícolas fornecerá oportunidades para expandir seus papéis.

A legitimidade do uso de transgênicos em larga escala

“Devem ter” é outro problema; ele levanta a questão da legitimidade. Determinar que papéis os transgênicos devam ter na agricultura do futuro, afirmo, precisa levar em conta investigações relacionadas às três seguintes questões. Primeiro, que métodos agrícolas - “convencional”, transgênico, agroecológico, orgânico, etc. - e em que combinações e com que variações, poderiam ser sustentáveis e suficientemente produtivos, quando acompanhados por métodos viáveis de distribuição, para responder às necessidades de alimentação e nutrição de toda a população mundial no futuro próximo? Segundo, quais são os benefícios esperados - incluindo aqueles ligados à sustentabilidade - do uso das várias alternativas agrícolas? Quem os colhe, e sob que condições[ii">? Terceiro, quais são os riscos potenciais envolvidos nas várias alternativas: riscos diretos à saúde humana e ao ambiente ligados a mecanismos químicos, bioquímicos e físicos, e riscos indiretos que surgem por causa de mecanismos socioeconômicos: por exemplo, no caso do uso disseminado de transgênicos, riscos ambientais de longo prazo (por exemplo, declínio da biodiversidade de plantas cultiváveis, novos problemas de pestes ligados à plantação de monoculturas) que surgem porque a maioria dos transgênicos não são apenas objetos biológicos, mas também commodities, inevitavelmente emaranhados em questões de direitos de propriedade intelectual, ou riscos a arranjos sociais que surgem do contexto real de seu uso, incluindo riscos de enfraquecimento de formas alternativas de cultivo, e (por isso) riscos ocasionados porque o uso extensivo de transgênicos pode fazer com que a oferta de comida do mundo fique cada vez mais sob o controle de poucas corporações.

Para elaborar a primeira pergunta sobre o conjunto de alternativas viáveis, precisamos colocar questões adicionais: há alternativas com capacidade produtiva comparável à dos métodos transgênicos, ou que possam atender a necessidades de alimentação e nutrição em contextos onde métodos transgênicos possam ter pouca aplicabilidade? Será que os próprios métodos transgênicos realmente têm o potencial de desempenhar um papel preponderante, de forma sustentável, para atender as necessidades de alimentação e nutrição mundiais? Que provas apóiam as respostas a estas questões? É interessante notar que a pesquisa e desenvolvimento que levaram aos usos atuais de transgênicos na agricultura não fazem parte de um projeto maior emoldurado por este conjunto de perguntas e de respostas que fornecesse apoio objetivo para a reivindicação de que eles eram necessários. Além do mais, sua implementação em práticas agrícolas não foi nem sequer adiada para se tratar desta questão: quais são as possibilidades abertas para a tecnologia dos transgênicos tendo em vista os riscos, abordagens agrícolas alternativas, e quem poderia ou não poderia se beneficiar delas? O ímpeto por trás do desenvolvimento de transgênicos foi principalmente comercial. A pesquisa por trás deles tratava de perguntas como: que características podem ser inseridas em plantas? Quais delas podem ser exploradas comercialmente? Será que o uso de transgênicos pode aumentar a produtividade das safras - e, se puder, de forma que seja mais sustentável ambientalmente do que usar métodos agrícolas “convencionais”? Depois, tentando mostrar que seus resultados poderiam servir tanto a fins “humanitários” quanto comerciais, e, assim se encaixar melhor à neutralidade, também se perguntou: como os resultados da pesquisa com transgênicos poderiam ser usados para lidar com os problemas de pequenos fazendeiros e suas comunidades em regiões empobrecidas? Entretanto, a expectativa de que pesquisas que atendam interesses comerciais também seriam relevantes para tratar dos problemas dos pobres, ou relevantes para os métodos agrícolas preferidos por pequenos fazendeiros (por exemplo, agroecologia) - apesar de dever ser considerada seriamente - não tem base empírica ou teórica sólida (Lacey 2006a: cap. 3; 2008c: cap 9). Assim, considerar “devem ter” não legitima priorizar, tanto na pesquisa científica quanto nas políticas públicas, o foco nas questões específicas sobre transgênicos, como se não pudesse haver dúvida sobre seu papel legítimo na agricultura do futuro, nem justifica assumir estas últimas perguntas como substitutos científicos à questão mais ampla sobre o conjunto de alternativas viáveis.

Riscos: diretos e indiretos

Quanto à terceira pergunta: todos concordam que, antes de seu lançamento comercial, riscos diretos de variedades transgênicas devem ser avaliados. Entretanto, eu questiono a adequação de se conduzir apenas testes diretos - pois para responder a pergunta “devem ter” é preciso avaliar riscos indiretos também. Questões metodológicas cruciais surgem aqui. A investigação de riscos indiretos requer recursos conceituais que não estão disponíveis em avaliações de risco padrão, que - lidando com dimensões quantitativas e probabilísticas de danos potenciais - são conduzidas na abordagem descontextualizada, como a pesquisa em biologia molecular e biotecnologia que baseia a tecnologia dos transgênicos. Transgênicos, obviamente, são objetos biológicos, abertos a (por exemplo) investigações genômicas e moleculares conduzidas sob estratégias que se encaixam na abordagem descontextualizada. Eles também são objetos socioeconômicos, e aqueles que realmente estão em uso são, em sua maioria, commodities patenteadas ou envolvidas numa rede complexa de reivindicações de direitos de propriedade intelectual (é bom lembrar que sementes transgênicas que se tornam plantas resistentes a glifosato são vendidas como “RoundUp Ready“[iii">). Os riscos que podem ser ocasionados pelo uso de transgênicos podem surgir não apenas das propriedades e efeitos que eles têm por serem objetos biológicos, mas também porque são objetos socioeconômicos. Todos os riscos, independente de serem possibilitados por características biológicas ou socioeconômicas, são pertinentes para a questão “devem ter”, e todos levantam perguntas para investigações científicas, mesmo que aqueles possibilitados por características socioeconômicas não possam ser investigados dentro da abordagem descontextualizada.

Eu defino a pesquisa científica como investigação empírica sistemática, de acordo com as normas da objetividade, conduzida sob estratégias que possibilitem obter entendimento dos fenômenos sendo investigados. Entretanto, especialmente hoje em dia (ver nota 3), mas também por meio da tradição científica moderna, a pesquisa científica normalmente é considerada virtualmente idêntica à pesquisa realizada por meio da abordagem descontextualizada. Mas, quando se faz esta identificação, não há razão “científica” para pensar que a ciência pode fornecer entendimento de todos os fenômenos pertinentes à questão “devem ter”. A convicção de que todos os fenômenos eventualmente sucumbirão ao impulso redutivo da ciência (descontextualizada) não fornece uma razão “científica” porque, apesar de seu valor heurístico freqüente, é uma convicção metafísica e não um resultado estabelecido por investigação científica. Além do mais, ela tende a desvalorizar formas de investigação empírica sistemática que não estão contidas na abordagem descontextualizada, e que podem produzir resultados que satisfazem as normas da objetividade - na agroecologia, por exemplo, em que agroecossistemas são investigados em relação a como se saem tendo em vista as seguintes aspirações: produtividade, integridade ecológica e preservação da biodiversidade, saúde social, e fortalecimento das ações de populações locais - buscando descobrir as condições sob as quais as aspirações podem ou não ser realizadas num equilíbrio apropriado (Lacey, 2007)[iv">. (Agroecossistemas são os sistemas sociais/ecológicos em que ocorre a produção agrícola e a distribuição de seus produtos. Estes sistemas fazem parte de sistemas socioeconômicos mais amplos, de forma que investigá-los requer atenção não apenas a dimensões locais, mas também àquelas com alcance mundial.) As estratégias de pesquisa multi e interdisciplinares da agroecologia são bem equipadas para investigar os riscos indiretos e incertezas de longo prazo dos transgênicos enquanto componentes de sistemas agroecológicos que também contêm empresas de capital intensivo e o sistema internacional de mercados. Isto fornece o contexto em que os proponentes do princípio da precaução (caixa 4) enfatizam a importância do pluralismo metodológico (Lacey, 2006b); eles querem que todas as investigações relevantes para a avaliação da legitimidade das inovações sejam conduzidas, encaixando-se ou não na abordagem descontextualizada.

“Nenhum risco” e “nenhuma alternativa”

Defensores do uso dos transgênicos constantemente afirmam “nenhum risco”, o que quer dizer (sem mencionar algumas nuances importantes), “os transgênicos que foram comercializados, depois de passar por avaliações de risco suficientes, não representam nenhum risco sério (de saúde ou ambiental) desde que sejam utilizados de acordo com as regulamentações atuais”. Eles muitas vezes reivindicam autoridade científica quando afirmam: “não há prova científica que desafie ‘nenhum risco’”, e insinuam (quando não dizem claramente): “há provas científicas convincentes que apóiam ‘nenhum risco’”. Mas “nenhum risco” não tem bom apoio de provas científicas, mesmo que “nenhum risco direto” seja bem comprovado por investigações realizadas por meio da abordagem descontextualizada, pois riscos indiretos têm sido em grande parte ignorados nas pesquisas que estão sendo realizadas[v">.

“Nenhum risco” só ganha força total quando conjugado com “nenhuma alternativa”, quer dizer, “não há nenhuma forma alternativa de plantio que possa superar o papel fundamental que se prevê para os transgênicos no suprimento das necessidades de alimentos e nutrição do mundo”. Se “nenhuma alternativa” for verdade, então, eticamente, deveria haver maior tolerância para os riscos menos importantes que podem ser ocasionados pelo uso de transgênicos. Assim, questões sobre riscos e alternativas estão interligadas complexamente. Além do mais, como no caso de “nenhum risco”, a falta de evidências sobre alternativas é evidência para “nenhuma alternativa” apenas se investigações relevantes tiverem sido conduzidas. Eu acredito que há indicações convincentes sobre o potencial produtivo significativo da agroecologia (Lacey, 2006a: cap. 5 e as referências nesse texto; EMBRAPA, 2006), e sobre seu papel bem-sucedido para ajudar a suprir as necessidades de comida e nutrição em várias comunidades de pequenos fazendeiros, cujas necessidades são ignoradas na ordem econômica neoliberal predominante. Mesmo assim, aqueles que afirmam “nenhuma alternativa” raramente tentam refutar os resultados empíricos e os argumentos teóricos sobre a agroecologia. Entretanto, tendo em vista sua promessa de benefícios para os pobres e a falta de muitos dos supostos riscos dos transgênicos, vale a pena descobrir por meio de investigações empíricas qual é o potencial produtivo genuíno da agroecologia. Além do mais, a não ser que a pesquisa e desenvolvimento sobre a agroecologia aumentem muito, afirmações de “nenhuma alternativa”, e, portanto, de “nenhum risco”, continuarão sem ter apoio empírico adequado.

Já que estas reivindicações de “nenhum risco” e “nenhuma alternativa” não exprimem (pelo menos no momento) conhecimento científico objetivo, a autoridade da ciência será abusada quando invocada para apoiá-las, abusada, conscientemente ou não, a serviço dos interesses do capital e do mercado, pois estas reivindicações são cruciais para afirmar a legitimidade do uso disseminado e em expansão dos transgênicos. Entretanto, o abuso da autoridade da ciência pode não estar imediatamente visível quando se dá um privilégio praticamente exclusivo a pesquisas realizadas através da abordagem descontextualizada, pois então o uso das múltiplas estratégias necessárias para investigar “nenhum risco” e “nenhuma alternativa” adequadamente (incluindo algumas que não se encaixam na abordagem descontextualizada) tende a não ser considerado “ciência de verdade” (isto certamente não se fundamenta muito no “capital científico” - para usar o feliz termo de Pierre Bourdieu (2004) - que é acumulado e transmitido na maioria dos departamentos universitários de ciência). Por esta razão, além do fato de que ela não se encaixa facilmente nos projetos de grande escala do agribusiness, não se dá muita atenção à pesquisa sobre agroecologia e sobre os riscos ocasionados por estruturas e mecanismos socioeconômicos. Todavia, é essa pesquisa que se torna apropriada e necessária para compreender os fenômenos principais em questão, riscos indiretos e alternativas agrícolas.



[i"> Esta seção resume argumentos expostos detalhadamente em Lacey (2006a), e documentados exaustivamente nessa obra.

[ii"> Eu não discutirei esta questão neste artigo. Ela é discutida em Lacey (2006a): cap. 3.

[iii"> Muitas vezes um transgênico (objeto biológico) existe apenas por causa de seu papel socioeconômico. As relações sociais de produção de tecnologia de transgênicos, e do conhecimento que a baseia, são as mesmas do seu uso - e não é preciso adicionar muitas qualificações para levar em conta que algumas pesquisas com transgênicos são conduzidas por cientistas com motivações genuinamente humanitárias. Não é apenas uma questão dos usos que a tecnologia dos transgênicos pode ter, como se alguns riscos fossem derivados não da tecnologia em si, mas dos usos que ela tem. Um transgênico é apenas um objeto, simultaneamente biológico e socioeconômico, e a comunidade científica tem responsabilidade por todos os seus usos antecipados e previsíveis.

[iv"> Para detalhes sobre agroecologia e várias referências, ver Lacey (2006a: cap. 5) e também EMBRAPA (2006).

[v"> Para detalhes sobre riscos, ver Lacey (2006a: cap. 4; 2008c: cap. 10).

Fonte: Mercado Ético


< voltar