Crescimento econômico, meio ambiente e sustentabilidade - parte 1

Data: 28/07/2009

Crescimento econômico, meio ambiente e sustentabilidade - parte 1


Hugh Lacey
Arranjos socioeconômicos que melhoram o bem-estar humano e a sustentabilidade social e ambiental são ambos, prima facie, bens altamente estimados. Assim, quando há obstáculos para melhorá-los conjuntamente, é preciso buscar um equilíbrio apropriado que respeite ambos. Entretanto, na modernidade tem havido um consenso amplo entre as potências dominantes que o crescimento econômico per se é um componente essencial de tais arranjos socioeconômicos, e ele tem recebido prioridade sobre a sustentabilidade, culminando na profunda crise ambiental que enfrentamos atualmente com suas implicações sociais muitas vezes devastadoras[1">. Já que a trajetória do neoliberalismo depende tanto da inovação tecno-científica, é quase certo que esta crise apenas se agravará, pois a implementação de inovações tecno-científicas não apenas contribui para o crescimento econômico, mas também, em muitos setores, pode produzir efeitos colaterais que prejudicam a sustentabilidade social e ambiental. Isto causa impactos na conduta da pesquisa científica, criando tensões nas práticas e instituições científicas, tensões que têm dimensões que atingem a filosofia e a ética da ciência. Eu discutirei as tensões afetando a ciência, usando a controvérsia sobre plantio de transgênicos para ilustrá-las. Elas estão resumidas na Caixa 5 ao final do artigo.

A tensão fundamental

A tensão fundamental trata dos valores que são refletidos nas atividades científicas. A tradição da ciência moderna afirma que a pesquisa científica é (ou deveria ser) objetiva, neutra e autônoma (ver a Caixa 1 para enunciados resumidos) e que a integridade da ciência depende dela refletir estes três valores (Lacey, 1998; 1999; 2005; 2008c).

Mas é difícil reconciliar a neutralidade e a autonomia com o papel da tecno-ciência ligada ao crescimento econômico, ou o da ciência inserida na lógica do capital (”ciência de interesses privados” - Krimsky, 2003). Por um lado, a aplicação de conhecimento científico fundamenta as inovações tecno-científicas, de forma que práticas científicas são parcialmente responsáveis - como um fator causal - pelo aumento do crescimento econômico que, por sua vez, é em grande parte responsável pela atual crise ambiental. Por outro lado, a ciência também pode fornecer conhecimento e entendimento do meio-ambiente, e também sobre o que fortalece e o que enfraquece a sustentabilidade, e talvez sobre como regenerar ecossistemas devastados. Mas, na verdade, a ciência moderna não produziu o conhecimento necessário para lidar com a atual crise ambiental, e está apenas começando a entender bem sua extensão, dimensões e causas prováveis. Além do mais, comparados aos recursos investidos em pesquisas que podem aprimorar a inovação tecno-científica, aqueles investidos no impacto social e ambiental da implementação destas inovações têm sido minúsculos; e - apesar do maior impacto dos problemas causados (por exemplo) pelo aquecimento global recair sobre países pobres - a pesquisa sobre como responder a estes problemas enfoca principalmente as preocupações dos países ricos. Daí a tensão: práticas científicas são parcialmente responsáveis (como um fator causal) pelo avanço do crescimento econômico subjacente à crise ambiental, mas elas também poderiam ser responsáveis (mas não o são o suficiente) pela geração do conhecimento que nos permitiria lidar melhor com a questão da sustentabilidade, e antecipar ameaças futuras à sustentabilidade. Assim, o caminho pelo qual a ciência está sendo conduzida não se encaixa facilmente com a neutralidade; ele serve bem os valores do capital e do mercado, mas não os da sustentabilidade.

Tensões envolvendo prioridades de pesquisa e temas de metodologia científica

Esta tensão claramente reflete o fato que o aumento do crescimento econômico ocupa uma posição superior nas perspectivas de valor que moldam as atuais práticas científicas do que a sustentabilidade social e ambiental. Isto se reflete nas prioridades de pesquisa: inovações tecno-científicas são enfatizadas em vez de seu impacto social e ambiental. Muitas vezes se tenta aliviar a tensão pressupondo-se que soluções tecno-científicas aparecerão para mitigar qualquer dano genuinamente sério causado por inovações tecno-científicas. Esta pressuposição tem apoio empírico duvidoso. Certamente, o tipo de pesquisa que leva às próprias inovações tecno-científicas não tem os recursos metodológicos necessários para fornecer toda a evidência relevante.

A tensão não reflete apenas prioridades de pesquisa, pois temas metodológicos fundamentais também estão em jogo. Muitos dos pensadores que requerem o uso do princípio da precaução (Caixa 4) para encontrar um equilíbrio melhor entre atividades econômicas e sustentabilidade (no qual o crescimento seria subordinado a outros anseios) pensam que a metodologia subjacente às inovações tecno-científicas não é adequada para entender riscos e práticas alternativas que seriam necessárias para produzir o equilíbrio melhor desejado. Eles acham que da forma pela qual a ciência está sendo conduzida, dar um privilégio praticamente exclusivo para um tipo de abordagem metodológica, em vez de utilizar os recursos abertos pelo pluralismo metodológico, contribui causalmente para os danos ambientais causados pelo crescimento econômico.

Para compreender o que está em jogo aqui, eu considero útil pensar que uma abordagem metodológica é definida pela adoção de uma estratégia, cujos principais papéis são:[2">

Restringir os tipos de teorias e hipóteses que podem ser cogitadas num projeto de pesquisa, especificando (entre outras coisas) os tipos de possibilidades que podem ser exploradas e os tipos de recursos conceituais que podem ser empregados; e
Fornecer critérios para selecionar os tipos de dados empíricos que teorias aceitáveis devem encaixar, especificando assim quais são os dados empíricos relevantes que devem ser obtidos.
Eu chamo a abordagem privilegiada a que me referi no parágrafo anterior de abordagem descontextualizada (Caixa 2). Ela incorpora estratégias sob as quais teorias potencialmente admissíveis são restringidas àquelas que podem representar e explicar fenômenos e encapsular suas possibilidades em termos que exibam seu caráter de lei, assim, normalmente em termos de sua geração (ou possibilidade de geração) a partir de estruturas subjacentes e seus componentes, processos e interações; e as leis (caracteristicamente expressas de forma matemática) que as governam. Historicamente, houve um número considerável de estratégias que se encaixaram na abordagem descontextualizada, e estas criaram um conjunto grande e amplo de teorias que foram aceitas de acordo com os padrões de objetividade - partindo, por exemplo, da abordagem mecânica do século XVII e culminando, por um lado, na abordagem matemática da mecânica racional e, por outro, na fisiologia moderna, na abordagem molecular da química moderna e suas extensões na biologia, e a admissibilidade de leis probabilísticas fundamentais na mecânica quântica, até o uso de modelos neurofisiológicos e computacionais no estudo da mente. Representar fenômenos desta forma os descontextualiza, ao dissociá-los de qualquer lugar que eles possam ter em relação a arranjos sociais, vidas e experiência humana, de qualquer ligação com a ação humana, valores e qualidades sensoriais, e de quaisquer possibilidades que eles possam ganhar em virtude de suas posições em contextos sociais, humanos e ecológicos particulares. Complementando estas restrições a teorias admissíveis, dados empíricos são selecionados, procurados - normalmente sujeitos às condições de intersubjetividade e replicabilidade - e relatados usando categorias descritivas que são geralmente quantitativas, e aplicáveis em virtude de operações de mensuração, instrumentais e experimentais.


A tecnociência (segundo o meu uso do termo) se refere a práticas de pesquisa conduzidas dentro da abordagem descontextualizada, que ou mantêm em vista o horizonte da geração de inovações tecnológicas e produzem resultados que auxiliam e explicam a eficácia de inovações, ou cuja conduta depende fortemente da geração (instrumentalmente, experimentalmente, na análise de dados) de produtos tecnológicos avançados. Virtualmente toda a pesquisa científica conduzida hoje dentro da abordagem descontextualizada é tecnociência, de forma que, cada vez mais, se supõe que a ciência contemporânea se tornou idêntica à tecnociência[3">. Todavia, apesar da abordagem descontextualizada ter se mostrado notavelmente versátil para produzir conhecimento confirmado objetivamente, e extraordinariamente frutífera na geração de inovações tecnocientíficas, ela não abrange todas as estratégias sob as quais conhecimento objetivamente confirmado pode ser obtido. A pesquisa científica pode ser conduzida sob um pluralismo de estratégias, não apenas aquelas que se encaixam na abordagem descontextualizada, mas outras que permitem investigação empírica que levam completamente em conta as dimensões ecológicas, experienciais, sociais e culturais de fenômenos e práticas (como a agroecologia). Esta é a reivindicação do pluralismo metodológico (Lacey, 2005: parte I; 2008c).


[1"> Sobre as conseqüências humanas e sociais da crise ambiental, ver Shrader-Frechette (2007).

[2"> Esta concepção é desenvolvida com detalhes em Lacey (1998; 1999; 2005; 2008c).

[3"> Garcia (2006, 2007), enfocando principalmente a biotecnologia, fornece uma descrição inspirada deste fenômeno e de seu desenrolar histórico nas décadas recentes, quando a ciência ficou cada vez mais ligada (e até subordinada) a interesses corporativos, políticos e militares, e com o que eu chamo abaixo (Caixa 3) de “valores do progresso tecnológico”. Pestre (2008), com rica documentação, também analisa esta história, e discute as dificuldades colocadas por este fenômeno para “o gerenciamento democrático da tecno-ciência, e de produtos tecno-científicos, na e pela sociedade”.

Fonte: Mercado Ético


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