Concessão de Bacias Hidrográficas

Data: 15/05/2009

Concessão de Bacias Hidrográficas


Em 2015 vencem as concessões de diversas usinas hidrelétricas que somam cerca de 20% da capacidade instalada do país. Em artigo publicado ontem no Valor, José Luiz Alquéres, respeitado veterano do setor elétrico e atualmente presidente da Light, sugere que se pense desde já como aproveitar essa oportunidade para administrar o uso dos rios de uma forma economicamente mais eficiente e ambientalmente mais sustentável. Em essência, ele propôs uma mudança no marco legal para concentrar numa única entidade, a "autoridade de bacia", a responsabilidade de utilizar os rios para usos múltiplos - abastecimento humano e animal, produção de eletricidade, transporte fluvial, irrigação, controle de cheias, recreação e turismo.

Nos EUA esse modelo é bem sucedido, como demonstra a história do Tennessee Valley Authority (TVA), uma corporação federal criada pelo presidente Roosevelt com jurisdição sobre um território que se estende por diversos Estados, cujos objetivos são produzir energia elétrica e propiciar o desenvolvimento regional. Alquéres inova ao sugerir que a "autoridade de bacia" possa ser uma concessionária (empresa pública ou privada) do uso de recursos hídricos da bacia, inclusive para produção de energia elétrica. Naturalmente, submetida à regulação e fiscalização das agências reguladoras.

Atualmente, as autorizações e concessões são outorgadas de forma fragmentada para uso da água como insumo de processo produtivo - por exemplo, para empresas de irrigação - e para uso de potencial hidráulico (queda de água) para as geradoras de energia elétrica. O direito de uso da água é uma autorização administrativa que pode ser dada pela Agência Nacional de Águas (ANA), em nome da União, ou pelos governos estaduais, conforme o caso. Assim, ocorre que o mesmo metro cúbico de água pode ser outorgado por uma autoridade estadual, para uso na parte alta da bacia, e pela autoridade federal, para uso na parte baixa. Um caso típico de "bola dividida".

Na tentativa de resolver o problema, a ANA tem feito pactos nos comitês de bacia hidrográfica (uma espécie de parlamento das águas) visando a formação de consensos sobre a utilização dos recursos hídricos. Porém, o progresso tem sido lento. Em minha opinião, muito se discute sobre "quem manda" e pouco sobre "quem faz e como se faz". Diferentemente da agência de bacia (secretaria executiva do comitê), a autoridade de bacia teria musculatura econômica, decorrente da produção de eletricidade, para garantir os investimentos necessários para assegurar o uso múltiplo dos recursos hídricos em sua área de jurisdição.

Essa solução - os entes federados delegando competência para uma autoridade exercer poderes numa determinada área de jurisdição - assemelha-se ao que a ANA cogitou para a Bacia do Rio Piracicaba, que é compartilhada pelos Estados de São Paulo e Minas Gerais. No caso, a ideia era criar um consórcio público formado pelos dois Estados e pela União, que teria competência para outorgar e cobrar pelo uso dos recursos hídricos.

A proposta de Alquéres alinha-se com a necessidade de uma melhor coordenação entre os diversos usos dos recursos hídricos. Como diretor-presidente da ANA, e depois como diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), defendi a adoção da bacia hidrográfica como unidade para o planejamento e administração dos usos dos recursos hídricos, inclusive os potenciais hidráulicos. Propus aperfeiçoamento na interação entre ANA, Aneel e Ibama no sentido de antecipar a discussão sobre a implantação de hidrelétricas para a fase de inventário, quando se define, numa primeira aproximação, as possíveis localizações de futuras usinas. Hoje, o grosso da discussão, inclusive com o envolvimento da sociedade, só ocorre na fase de estudo de viabilidade ou de projeto básico, quando se examina uma específica usina, e não a bacia como um todo.

Ao estudar o potencial energético de um rio, é preciso considerar simultaneamente os aspectos energético, econômico, socioambiental e uso múltiplo dos recursos hídricos. Penso que em bacias hidrográficas particularmente importantes o trabalho deveria ser feito por uma equipe mista, formada por técnicos da Empresa de Planejamento Energético (EPE), ANA e Ibama. Se assim fosse, o sistema ambiental participaria da formulação das principais alternativas estratégicas para o setor de energia desde o início, e teria que dizer sim para alguma delas. A alternativa escolhida não seria impecável sob a ótica exclusivamente socioambiental, mas seria a melhor sob o olhar conjunto. Com essa sistemática, a emissão de licenças prévias e declarações de disponibilidade hídrica seria feita simultaneamente para todas as futuras usinas da alternativa selecionada.

Se a proposta de Alquéres fosse aplicada na Bacia do Rio São Francisco, haveria a reprodução do modelo do TVA. Uma única autoridade ficaria encarregada da produção de eletricidade e do controle de cheias (atualmente sob responsabilidade da Chesf), das dragagens necessárias para o transporte hidroviário, e da operação e manutenção da infraestrutura presentemente sendo construída com o objetivo de conduzir água do "Velho Chico" para as bacias do nordeste setentrional.

Em algumas bacias amazônicas, por exemplo, a do Teles Pires, a materialização da proposta significaria a escolha por licitação de um concessionário da bacia que teria a responsabilidade de construir de uma só vez todas as usinas hidrelétricas e as respectivas eclusas. Assim, estaria assegurado, além da produção de eletricidade, o escoamento por via fluvial de milhões de toneladas de grãos produzidos no Centro-Oeste. Hoje esse transporte é feito por caminhões que trafegam ao longo de milhares de quilômetros, com efeitos deletérios sobre a nossa competitividade, a vida útil das rodovias e a qualidade ambiental.

Jerson Kelman é professor da Coppe/UFRJ. Foi diretor-presidente da ANA e diretor-geral da Aneel.



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