Um roteiro seguro para nossas águas
Washington Novaes 10 out 2014
Em alguns lugares o estoque se esgotou, com o desmatamento e a impermeabilização do solo, que impedem a infiltração da água. E não se recomporá apenas de um ano para outro
É preocupante que a maior parte das discussões sobre a crise no abastecimento de água em várias regiões do País continue a admitir explícita ou implicitamente que a solução virá, neste fim de ano, apenas com a normalização do regime de chuvas, principalmente em São Paulo, Minas Gerais e no Cerrado. Será preciso muito mais. Vai-se de susto em São Paulo. Pela primeira vez na história, a nascente do Rio São Francisco, na Serra da Canastra (MG), está completamente seca e o rio também quase não recebe mais, ao longo de seus 2.700 quilômetros, água de seus tributários que nascem no Cerrado ou nele estão. Há quase uma década o autor destas linhas registrava, em documentário para a TV Cultura, que o problema já estava presente no Verde Grande e outros afluentes do São Francisco, com o desmatamento no Cerrado; o então diretor de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, professor Bráulio S. Dias, dizia que uma avaliação no subsolo do Cerrado que verte água para as três maiores bacias brasileiras mostrava um estoque suficiente para sete anos. Mais alguns anos à frente, já secretário-geral da Convenção da Biodiversidade da ONU, o professor Bráulio mostrava sua preocupação com a queda do estoque para um fluxo de apenas três anos. Ao que parece, em alguns lugares o estoque se esgotou, com o desmatamento (mais de 50% do Cerrado) e a impermeabilização do solo, que impedem a infiltração da água. E não se recomporá apenas de um ano para outro. É a tese, por exemplo, do professor João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco (Recife), para quem a chegada de novas chuvas não garante, em absoluto, a infiltração da água no solo e tampouco a volta da normalidade nas nascentes (remabrasil, 30/9). O problema é grave também em outras áreas. Observa o jornalista científico Julio Ottoboni (Eco21, agosto de 2014), que parte do Sudeste brasileiro, do Centro do País e do Sul podem estar caminhando para a desertificação, com a situação atual agravada pela seca relacionada com a devastação da Floresta Amazônica e sua influência nos regimes do clima mais a sul, como cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e do Instituto de Pesquisas da Amazônia alertam há uma década. A floresta amazônica, lembra ele, só de 1970 para cá perdeu 600 mil quilômetros quadrados de floresta (já há cálculos de que, no total, sejam 750 mil quilômetros quadrados , segundo a Folha de S.Paulo, 9/6). Com isso o fluxo para o Sul de nuvens de ar úmido que dali provinham vem sendo bloqueado progressivamente. Também a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO-ONU) vem alertando (24/7) para a necessidade premente de deter o processo de degradação do solo, que já é de moderado a altamente preocupante em 33% das terras, onde está um quarto da biodiversidade e parcela importante da água. No nosso continente a degradação já está presente em 25% dos solos; desde o século 19, nada menos que 60% do carbono armazenado nos solos se perdeu, com mudanças no uso da terra, desmatamento para a agricultura e pecuária e outras atividades. No Semiárido brasileiro o mais chuvoso do mundo, segundo João Suassuna -, 90% da água da água se evapora sem se infiltrar no solo impermeabilizado. E faz lembrar o então ministro Celso Furtado quando dizia que a ocupação da faixa litorânea do Nordeste pela cana-de-açúcar deslocara a maior parte da população para as regiões mais áridas e impróprias para a agricultura, com água escassa (daí a criação, em pequena escala, de gado bovino e bodes). Faz lembrar também o escritor Ariano Suassuna, que ao ser perguntado por este escriba sobre o que achava dos programas de combate à seca no Nordeste, respondeu de pronto: Tentar combater a seca no Nordeste é o mesmo que tentar impedir a neve na Sibéria. O correto são programas de convivência, explicou. Como as cisternas de placa, as barragens subterrâneas e não com transposição de água, pode-se acrescentar. Então, não se avançará sem forte apoio à substituição da lenha na matriz energética do Semiárido (30% do total). Não se avançará sem programas federais, estaduais e municipais de combate drástico ao desmatamento (o desmatamento recente na Amazônia voltou a crescer). Sem repressão implacável a queimadas ali e no Cerrado, onde no período janeiro/julho último foram quase 20 mil, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Onde as novas áreas de pastagens respondem por 46% da área desmatada, segundo o Inpe e Embrapa (Valor, 22/9). E é preciso partir imediatamente, em todo o País, e mais especialmente no caso paulista, para fortes programas de redução de perdas nas redes de distribuição de água. No País, a perda média é de 40%. Mesmo em São Paulo, que as reduziu para pouco mais de 25%, não faz sentido admitir um futuro muito sombrio se é possível eliminar essa perda desde que se impeça a influência das grandes empreiteiras de obras, que não as querem nas redes, por se tratar de pequenas intervenções ao longo de toda a cidade, e não de obras milionárias (como as de transposição ou de captação de água a grandes distâncias).
* Washington Novaes é jornalista. - Reprodução de conteúdo livre desde que sejam publicados os créditos do Instituto Akatu e site www.akatu.org.br.
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Em alguns lugares o estoque se esgotou, com o desmatamento e a impermeabilização do solo, que impedem a infiltração da água. E não se recomporá apenas de um ano para outro
É preocupante que a maior parte das discussões sobre a crise no abastecimento de água em várias regiões do País continue a admitir explícita ou implicitamente que a solução virá, neste fim de ano, apenas com a normalização do regime de chuvas, principalmente em São Paulo, Minas Gerais e no Cerrado. Será preciso muito mais. Vai-se de susto em São Paulo. Pela primeira vez na história, a nascente do Rio São Francisco, na Serra da Canastra (MG), está completamente seca e o rio também quase não recebe mais, ao longo de seus 2.700 quilômetros, água de seus tributários que nascem no Cerrado ou nele estão. Há quase uma década o autor destas linhas registrava, em documentário para a TV Cultura, que o problema já estava presente no Verde Grande e outros afluentes do São Francisco, com o desmatamento no Cerrado; o então diretor de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, professor Bráulio S. Dias, dizia que uma avaliação no subsolo do Cerrado que verte água para as três maiores bacias brasileiras mostrava um estoque suficiente para sete anos. Mais alguns anos à frente, já secretário-geral da Convenção da Biodiversidade da ONU, o professor Bráulio mostrava sua preocupação com a queda do estoque para um fluxo de apenas três anos. Ao que parece, em alguns lugares o estoque se esgotou, com o desmatamento (mais de 50% do Cerrado) e a impermeabilização do solo, que impedem a infiltração da água. E não se recomporá apenas de um ano para outro. É a tese, por exemplo, do professor João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco (Recife), para quem a chegada de novas chuvas não garante, em absoluto, a infiltração da água no solo e tampouco a volta da normalidade nas nascentes (remabrasil, 30/9). O problema é grave também em outras áreas. Observa o jornalista científico Julio Ottoboni (Eco21, agosto de 2014), que parte do Sudeste brasileiro, do Centro do País e do Sul podem estar caminhando para a desertificação, com a situação atual agravada pela seca relacionada com a devastação da Floresta Amazônica e sua influência nos regimes do clima mais a sul, como cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e do Instituto de Pesquisas da Amazônia alertam há uma década. A floresta amazônica, lembra ele, só de 1970 para cá perdeu 600 mil quilômetros quadrados de floresta (já há cálculos de que, no total, sejam 750 mil quilômetros quadrados , segundo a Folha de S.Paulo, 9/6). Com isso o fluxo para o Sul de nuvens de ar úmido que dali provinham vem sendo bloqueado progressivamente. Também a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO-ONU) vem alertando (24/7) para a necessidade premente de deter o processo de degradação do solo, que já é de moderado a altamente preocupante em 33% das terras, onde está um quarto da biodiversidade e parcela importante da água. No nosso continente a degradação já está presente em 25% dos solos; desde o século 19, nada menos que 60% do carbono armazenado nos solos se perdeu, com mudanças no uso da terra, desmatamento para a agricultura e pecuária e outras atividades. No Semiárido brasileiro o mais chuvoso do mundo, segundo João Suassuna -, 90% da água da água se evapora sem se infiltrar no solo impermeabilizado. E faz lembrar o então ministro Celso Furtado quando dizia que a ocupação da faixa litorânea do Nordeste pela cana-de-açúcar deslocara a maior parte da população para as regiões mais áridas e impróprias para a agricultura, com água escassa (daí a criação, em pequena escala, de gado bovino e bodes). Faz lembrar também o escritor Ariano Suassuna, que ao ser perguntado por este escriba sobre o que achava dos programas de combate à seca no Nordeste, respondeu de pronto: Tentar combater a seca no Nordeste é o mesmo que tentar impedir a neve na Sibéria. O correto são programas de convivência, explicou. Como as cisternas de placa, as barragens subterrâneas e não com transposição de água, pode-se acrescentar. Então, não se avançará sem forte apoio à substituição da lenha na matriz energética do Semiárido (30% do total). Não se avançará sem programas federais, estaduais e municipais de combate drástico ao desmatamento (o desmatamento recente na Amazônia voltou a crescer). Sem repressão implacável a queimadas ali e no Cerrado, onde no período janeiro/julho último foram quase 20 mil, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Onde as novas áreas de pastagens respondem por 46% da área desmatada, segundo o Inpe e Embrapa (Valor, 22/9). E é preciso partir imediatamente, em todo o País, e mais especialmente no caso paulista, para fortes programas de redução de perdas nas redes de distribuição de água. No País, a perda média é de 40%. Mesmo em São Paulo, que as reduziu para pouco mais de 25%, não faz sentido admitir um futuro muito sombrio se é possível eliminar essa perda desde que se impeça a influência das grandes empreiteiras de obras, que não as querem nas redes, por se tratar de pequenas intervenções ao longo de toda a cidade, e não de obras milionárias (como as de transposição ou de captação de água a grandes distâncias).
* Washington Novaes é jornalista. - Reprodução de conteúdo livre desde que sejam publicados os créditos do Instituto Akatu e site www.akatu.org.br.
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