Agua sem sal

Data: 16/01/2018
Fonte: AGENCIA FAPESP

Agua sem sal


Para extrair sal da água do mar ou água salobra de reservatórios subterrâneos, a tecnologia mais utilizada atualmente é a osmose reversa. O processo é considerado de alto custo pelo material utilizado e pelo gasto com energia elétrica: uma bomba de alta pressão força a água a passar por uma membrana polimérica, que retém os sais. Uma alternativa de dessalinização, com menor gasto de energia, é o processo de deionização capacitiva que utiliza carvões ativados com poros nanométricos (1 nanômetro equivale a 1 milímetro dividido por 1 milhão) para retirada da salinidade da água. Carvões com características diferenciadas para essa aplicação foram desenvolvidos por pesquisadores do Departamento de Engenharia Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). “Eles são semelhantes aos usados em filtros de água comuns, mas com uma quantidade e tamanho de poros que proporcionam uma elevada área de retenção de íons e moléculas”, explica o engenheiro químico Luís Augusto Martins Ruotolo, professor da UFSCar.

Os carvões ativados podem ser feitos com diferentes materiais, como madeira, bagaço de cana, casca de coco e polímeros. No invento da UFSCar, o carvão foi preparado aquecendo-se um polímero condutor de eletricidade, chamado de polianilina, a 800 graus Celsius (°C), em condições adequadas para eliminar a matéria orgânica volátil. O resultado foi um eletrodo rico em carbono. A inovação dos pesquisadores da UFSCar tornou os carvões ativados mais eficientes e com melhor capacidade de retenção de moléculas ou íons na superfície. Ruotolo e o doutorando Rafael Linzmeyer Zornitta, que são do Laboratório de Tecnologias Ambientais (Latea), inseriram dois desses eletrodos em uma célula eletroquímica composta por placas de acrílico e borrachas de vedação. Eles ficaram posicionados em lados opostos dentro da célula (ver infográfico) e separados por um canal onde escoa a água com sal (cloreto de sódio) a ser dessalinizada.

Para viabilizar a dessalinização, uma tensão elétrica de 1,2 volt (V) foi aplicada na célula eletroquímica. Essa tensão é menor do que a transmitida por uma pilha comum (AA), de 1,5 V. Assim, um dos eletrodos ficou polarizado com carga negativa e o outro com carga positiva. Com a entrada da água salobra na célula, passando entre os eletrodos, os íons de sódio (Na+), que tem carga positiva, são atraídos e retidos no eletrodo negativo, e o cloreto (Cl-) se desloca ao polo positivo. Quando os eletrodos se tornam saturados por esses elementos, basta inverter a polaridade e o material aderido será repelido, podendo ser deslocado para fora da célula, em um processo de retrolavagem. Os pesquisadores pretendem, no futuro, construir um protótipo e operá-lo com um painel de energia solar.

Carvões ativados que adsorvem sais já existem no mercado, mas não são adequados ao processo de deionização capacitiva por possuírem pequenas áreas de retenção dos íons de sal. Os carvões desenvolvidos no Latea apresentam áreas para reter elementos químicos seis vezes maior que os carvões de mercado. A invenção resultou em um pedido de patente depositada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) pela Agência de Inovação da UFSCar. A inovação abrange também outras possibilidades de uso desse material – como no tratamento de efluentes industriais e na extração de outros sais da água. “Em uma caldeira que gera vapor, por exemplo, a água tem que ser limpa o suficiente para que elementos como cálcio, magnésio e ferro não provoquem incrustações nas tubulações”, diz Ruotolo. Nesse estudo, ele conta com parcerias no Instituto Madrilenho de Estudos Avançados (IMDEA-Energía) e na Universidade de Málaga, ambos na Espanha, e na Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos.

© DIMA/FLICKR
Acima, equipamentos da usina que utiliza osmose reversa em Ashkelon, Israel: 392 mil m3 de água processada por dia, quantidade que serve 1 milhão de pessoas

Vantagens e desvantagens
Passada a primeira fase do projeto, o doutorando Rafael seguiu para o Instituto Leibniz de Novos Materiais, na Alemanha, onde integra uma equipe liderada pelo professor Volker Presser, que desenvolve tecnologia para deionização capacitiva. Ele levou na bagagem carvões ativados feitos de lignina de cana-de-açúcar fornecida pelo Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), de Campinas (SP). A lignina é o componente do bagaço que sobra do processo da segunda geração de fabricação de etanol. Ela está sendo usada, na Alemanha, na produção de carvões ativados para estudos sobre a deionização capacitiva. “A perspectiva é de que a segunda geração avance no Brasil nos próximos anos e sobrem grandes quantidades de lignina nas usinas”, diz Ruotolo.

A principal vantagem da deionização capacitiva sobre a osmose reversa, que domina o mercado de dessalinização, é o baixo custo de operação, por utilizar pressões de água menores e requerer baixas voltagens. Mas a deionização não serve ainda para a dessalinização da água do mar. Essa tecnologia não comporta um volume de sal maior que 10 gramas (g) por litro (l) – a água do mar contém 35 g/l. “Existe hoje uma grande mobilização da comunidade científica na busca por novos materiais ou estratégias de operação visando viabilizar a dessalinização por deionização capacitiva da água do mar”, comenta Ruotolo. Um processo ainda longo e difícil de superar nesse momento porque na osmose reversa a extração de sal é tão perfeita que a água sai na forma destilada. Para torná-la potável é preciso acrescentar pequenas quantidades de sais minerais.

Embora a tecnologia precise ser aperfeiçoada, a deionização capacitiva já é utilizada comercialmente por uma empresa da Holanda, a Voltea, que tem como investidores a Unilever Ventures e um fundo britânico de investimento em tecnologias ambientais, o Environmental Technologies Fund. A empresa, desde 2009, vende sistemas de dessalinização, embora não apropriados para a água do mar. A tecnologia usada pela Voltea se baseia na aplicação de uma tensão elétrica entre dois eletrodos de carbono poroso colocados em paralelo em uma célula. Os eletrodos de carbono são construídos camada a camada, na forma de filmes finos com espessuras em micrômetros. Esses dispositivos são dimensionados e posicionados conforme o volume da água que se quer dessalinizar. A tecnologia da Voltea é usada na dessalinização de água de torneira, para uso industrial e em irrigação na agricultura. A grande vantagem é o baixo consumo de energia. Mesmo com limitações, a Voltea foi reconhecida como uma das 21 Tecnologias Pioneiras em 2013, no Fórum Econômico Mundial, e premiada no 2010 Global Water Summit.

A ampliação das potencialidades de aplicação da deionização capacitiva ainda demanda desenvolvimento tecnológico, mas pode ser uma questão de tempo. “A aplicação comercial da osmose reversa teve início em 1965, mas somente nos anos 1980 começou a ser usada de forma extensiva na dessalinização. Foi um amadurecimento tecnológico, com novas soluções que foram aparecendo”, diz o engenheiro químico Emilio Gabbrielli, italiano radicado no Brasil, que presidiu a Associação Internacional de Dessalinização (IDA) até outubro deste ano. Atualmente é diretor de Desenvolvimento de Negócios Global do Setor de Águas da Toray, empresa japonesa que fabrica filtros e membranas de osmose reversa, entre outros produtos. Ele conta que, como a deionização, existem outras tecnologias experimentais que, em alguns anos, poderão substituir com custos mais baixos a osmose reversa.

Gabbrielli estima que a quantidade de água dessalinizada em todo o mundo é de 100 milhões de metros cúbicos (1 m3 é igual a mil litros) por dia, o equivalente a 20 vezes a vazão média do rio Tâmisa, que corta a cidade de Londres. Isso ocorre em cerca de 19 mil instalações de dessalinização. Hoje utilizam água dessalinizada entre 300 milhões e 400 milhões de pessoas, principalmente em países como Israel, Arábia Saudita, Cingapura, Austrália e Espanha. “Busca-se cada vez mais o uso de energia renovável, como a solar e a eólica, para mover os dessalinizadores, e países como Austrália e Arábia Saudita estão na frente dessa opção energética.” Em relação ao preço desse processo, o ex-presidente da IDA diz que o m3 de água dessalinizada custa entre US$ 0,60 e US$ 1,50 nas usinas de maior capacidade, dependendo da região onde é utilizada. Comparativamente, a água tratada ou transportada pelas companhias de abastecimento no Brasil custa entre R$ 0,10/m3 e R$ 0,20/m3, mas em muitos casos, que envolve o transporte por rodovias, pode estar perto do custo da dessalinização.

Para Gabbrielli, a dessalinização ganhará importância no país em um futuro próximo porque existe a necessidade de maior volume de água para as populações e se tornará importante em períodos de estiagem. O executivo prevê que um maior conhecimento das tecnologias e uma queda maior no preço dos dessalinizadores possam fazer as capitais brasileiras à beira-mar adotar esse processo. “Mas a tecnologia de osmose reversa também se aplica ao reúso de água. Imagino que dentro de 10 a 20 anos a água reusada servirá até mesmo para abastecimento tradicional”, diz o engenheiro químico.

No Brasil, a maior experiência de dessalinização acontece no sertão nordestino com os programas governamentais Água Boa (1998-2003) e Água Doce (2003-2010), do Ministério do Meio Ambiente, que levaram dessalinizadores para comunidades isoladas do semiárido. Nessa região, a água subterrânea é salobra porque entra em contato com rochas cristalinas. Hoje, 3 mil dessalinizadores atendem a cerca de 200 mil pessoas.

Os dois programas governamentais foram inicialmente coordenados pelo engenheiro químico Kepler França, professor do Laboratório de Referência em Dessalinização (Labdes) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), na Paraíba. Ele também contribuiu para a implantação de dessalinizadores no arquipélago de Fernando de Noronha instalados em 1998. Lá, o sistema instalado representa 40% do consumo das ilhas. O restante é fornecido por água de chuva acondicionada em poços e depois tratada.

O próximo grande centro brasileiro a contar com dessalinização da água do mar deverá ser Fortaleza, no Ceará. A Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) lançou, em agosto de 2017, um edital para escolher duas empresas que farão os estudos da futura usina. Recentemente, foram selecionadas as empresas espanholas GS Inima e Acciona, que entregarão o projeto em 150 dias. O empreendimento, que custará R$ 500 milhões, está previsto para 2020 e terá a meta de suprir 12% da água potável da Região Metropolitana de Fortaleza.

Projetos
1. Dessalinização por deionização capacitiva: Desenvolvimento de novos eletrodos e otimização do processo (nº 15/16107-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Luís Augusto Martins Ruotolo (UFSCar); Investimento R$ 228.804,27.
2. Dessalinização por deionização capacitiva: Desenvolvimento de eletrodos e otimização do processo (nº 15/26593-3); Modalidade Bolsa de doutorado; Pesquisador responsável Luís Augusto Martins Ruotolo (UFSCar); Bolsista Rafael Linzmeyer Zornitta; Investimento R$ 41.033,51; R$ 102.303,70 (Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior).

Artigo científico
ZORNITTA, R. L. e RUOTOLO, A. M. Simultaneous analysis of electrosorption capacity and kinetics for CDI desalination using different electrode configurations. Chemical Engineering Journal. On-line. 11 set. 2017.


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